quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Barquinhos no Oceano: Mitos para Peixes



Muitas histórias falam de seres mágicos que vêm à terra para se unir a seres mortais, como a mulher-foca dos esquimós ou as ondinas - também chamadas de sereias -, que vivem nas profundezas do mar ou de um lago, se apaixonam por um ser humano de carne e osso, e buscam a união em um outro nível de realidade. Em todas as variantes dessas histórias, o encontro é cheio de dificuldades: existem condições a serem preenchidas e, normalmente, termina em desastre. Não porque estivesse condenado desde o princípio, mas por causa da inaptidão do mortal, que tenta impor suas próprias leis e valores ao parceiro misterioso. Como os dois peixes que tentam nadar em direções opostas mas estão presos um ao outro por um cordão de ouro, que simbolizam o signo, Peixes carrega em si o dilema de duas dimensões: o lado mortal, que precisa da realidade tangível do comer, beber, reproduzir-se e morrer; e o lado misterioso que habita as profundezas e, ocasionalmente, abana a calda acima da água, fazendo-a brilhar ao sol e encantando o mortal que passeia pela praia. O processo desse encontro é a vida de cada pisciano. Alguns simplesmente seguem a sereia, esquecendo que seus pulmões são humanos, e se afogam. Esses acabam experimentando a vida dos delinqüentes, drogados ou bêbados desse signo. Mas há aqueles que conseguem traduzir o ser mágico que avistam, mostrando o brilho de outros reinos e de um universo quase incompreensível à mente humana em sua majestade e imensurabilidade, gerando filhos que circulam pelos dois mundos e oferecendo à humanidade um mapa de universos desconhecidos. Então encontramos físicos como Einstein, músicos como Chopin e artistas plásticos como Michelangelo.
Os mitos gregos estão cheios de histórias que nos mostram como lidar com os perigos do reino de Netuno. No mito de Ulisses, por exemplo, ele faz sua tripulação tapar os ouvidos e se amarra ao mastro quando tem que atravessar o mar cheio de sereias. Essa história é brilhantemente analisada pelo filósofo e crítico literário Walter Benjamin em seu livro Kafka, (trad. e introd. Ernesto Sampaio, Lisboa, Hiena, 1994), e vale a pena ler se você quiser aprofundar mais o assunto. Walter Benjamim tinha o Sol em Cãncer e a Lua em Peixes, portanto entendia bastante desses reinos profundos. Na Odisséia de Homero há também um trecho onde Menelau, marido legítimo de Helena, conta sua volta para Esparta após a guerra de Tróia, e de uma parada prolongada que foi obrigado a fazer em uma ilha. Tendo lá parado para pernoitar, acordou no dia seguinte com uma enorme ventania na direção oposta da que precisaria para zarpar. E assim passou-se o dia inteiro na expectativa do vento amainar ou mudar de direção. Passaram-se muitos dias assim e a situação acabou se tornando crítica, pois as provisões chegaram ao fim e a pescaria era difícil por causa da agitação do mar. Menelau caminhava sozinho e preocupado pela praia, pois percebia que aquilo só podia significar algum desagrado dos deuses, quando subitamente apareceu-lhe um ser de beleza tão radiante que só poderia ser uma imortal. Era uma nereida, filha de Nereu, o Velho do Mar. Com a expressão severa, ela lhe pergunta o que ele fazia a tanto tempo em sua ilha. O rei de Esparta contou-lhe que estava preso pela tempestade e pediu que o ajudasse a descobrir o que queriam os deuses, que não o deixavam partir. Ela lhe conta que o único que poderia interpretar as mensagens dos deuses enviadas pela tempestade seria o próprio Nereu, habitante das profundezas do oceano, conhecedor dos segredos da terra, do mar e dos ventos. Explicou-lhe também que Nereu tinha o poder de se transformar no que quisesse, e a única forma dele dizer algo seria agarrando-o enquanto dormia e segurar firme, fosse qual fosse a forma que ele tomasse, até ele voltar à forma de Velho do Mar, pois aí ele seria obrigado a responder qualquer pergunta que lhe fizessem. A nereida mostra a caverna em que seu pai se deitava para descansar com os botos, e Menelau, junto com alguns de seus homens, se esconde à espera da estranha criatura. Quando Nereu chega e se deita para dormir, é agarrado pelas pernas e pelos pés e imediatamente começa a se transformar nas mais estranhas criaturas desse e de outros mundos. Mesmo com o coração cheio de medo, Menelau e seus companheiros seguram firmes e em silêncio, até que os encantamentos cessem e Nereu volte a sua forma de Velho do Mar. Então o imortal pergunta ao mortal o que ele quer, e Menelau questiona-o sobre a razão da tempestade que o impede de partir. Nereu diz que o rei de Esparta, na pressa de partir de Tróia, havia negligenciado seus deveres para com os deuses, esquecendo-se de fazer as oferendas necessárias para que tivesse paz e fosse guiado com tranqüilidade para casa. Então Menelau agradece à Nereu, presta suas homenagens aos deuses e consegue seguir seu caminho.
Esse parece ser o trajeto que Peixes precisa fazer toda vez que se vê paralisado pelas tempestades em sentido contrário que o envolve, se ele não dá as oferendas exigidas por seus deuses internos. Sua salvação está em conseguir segurar firme e em silêncio o senhor de suas profundezas e enfrentar suas transformações até conseguir a resposta que necessita. Quando se apavora e se solta, acaba sendo devorado. Se, porém, encara corajosamente a consciência que tem das duas dimensões em que vive - com toda a confusão que isso gera - todos nós seremos beneficiados. Afinal, Peixes representa o potencial desperdiçado, porém divino, de toda a humanidade, e é preciso coragem para poder encarar algo muito - mas muito mesmo -, superior à nossa compreensão humana.

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