domingo, 10 de agosto de 2014

Saturno, Escorpião e Vazios Iniciáticos


“O mundo do dançarino é alcançado por dias e dias de trabalho, semanas de trabalho, anos de trabalho. É aqui no estúdio que o bailarino aprende seu ofício. O domínio de seu instrumento que é o corpo humano. Seu objetivo é a liberdade, mas a liberdade só pode ser conquistada através da disciplina. Disciplina imposta por você mesmo, sobre você mesmo. Ou o pé está esticado ou não está. Nem uma porção de sonhos o esticará por você.”

Martha Graham, bailarina contemporânea com Plutão em Trígono com Saturno.



Tenho aprendido muito esses anos em que o planeta Saturno atravessa o signo de Escorpião, principalmente com pessoas que estão passando pelo retorno de Saturno nesse signo. Em finais de 1981, Saturno inicia um processo de conjunção com Plutão nos últimos graus de Libra que vai até outubro de 1983, com Saturno já em Escorpião. Então, nos últimos três ou quatro anos, venho conversando com muita gente que ao enfrentar o retorno de Saturno também tem que enfrentar questões plutonianas. Agradeço muito a todos pela confiança e aqui vai um pouco do que andei conversando e pensando por aí sobre isso.

Tanto o retorno de Saturno quanto suas temporadas desafiantes anteriores, a cada sete anos aproximadamente, representam iniciações à vida adulta. São tempos em que temos que sacrificar confortos lunares e familiares em nome de uma maior participação no universo social mais amplo. A primeira oposição de Saturno por volta dos quinze anos costuma ser particularmente difícil e marcante porque o adolescente sabe que tem que sacrificar sua infância para poder entrar na “tchurma”, e para isso ele acredita ter que esconder muito profundamente (principalmente de si mesmo), todo o medo e insegurança que tem para não se sentir humilhado. Aí começam seus problemas com Saturno e a compreensão equivocada sobre o que é o mundo adulto.  É comum mães aflitas de adolescentes nessa fase de oposição me procurarem porque seus filhos, que eram muito cordatos  e responsáveis, começam a ir mal na escola e passam a se comportar de maneira agressiva dentro e fora de casa. Por mais solidária que eu possa ser com as aflições maternas por vivermos em uma sociedade profundamente desigual e violenta, do ponto de vista simbólico essas pessoas estão em busca de instruções para a vida adulta, precisam se arriscar para além da proteção lunar, e se estão se comportando dessa maneira “revoltada” provavelmente aprenderam em casa e no meio em que vivem que essa era a maneira para enfrentar a dor inevitável da vida. Lembrando que as crianças não aprendem através dos discursos politicamente corretos que fazemos para elas, mas através das atitudes, das brigas, reclamações e climas entre os pais, da maneira como os pais lidam com frustração e com os “outros”, com os comentários maldosos e “divertidos”, com a forma como se torce no jogo de futebol ou como se dirige no trânsito. Outra coisa que costuma se manifestar de maneira intensa porém inconsciente nessa fase, é a vida não vivida pelos pais, como diz Jung em O Desenvolvimento da Personalidade (CW XVII, Ed. Vozes, pg 47, par 87): “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não viveram (pois se trata de fenômeno psicológico atávico do pecado original). Essa afirmação poderia parecer algo de sumário e artificial sem esta restrição: essa parte da vida a que nos referimos seria aquela que os pais poderiam ter vivido se não a tivessem ocultado mediante subterfúgios mais ou menos gastos. Trata-se pois de uma parte da vida que (...) foi abafada talvez por uma mentira piedosa. É isso que abriga os germes mais virulentos.” Um ótimo filme que fala sobre isso é Em Um Mundo Melhor (Haevnen em Dinamarquês, que significa Vingança), da diretora Susanne Bier, de 2010.

Então o que fazer quando se revela uma grande ilusão a crença de que se você fosse um(a) bom(a) filho(a) seus problemas desapareceriam? Isso é muito frustrante, já que gastamos muito tempo da nossa infância aprendendo a reagir a nossos pais para conseguir o que queríamos e precisávamos, nos apoiando em nossas Luas. Precisamos entender que a “adultice” rebelde que se coloca no lugar também tem resultados problemáticos, já que superar as emoções infantis implica em saber reconhecê-las, não negá-las. Chega um tempo em que precisamos ver que o anseio por uma existência livre de problemas deve ser posto de lado em favor da aceitação madura da responsabilidade pela própria vida, e essa mudança constitui não apenas a ativação da consciência adulta, mas também uma forma de escolha. Esse é o significado mais profundo de Saturno, e é nesse sentido que ele ganha sua merecida fama de exigir sacrifício e trazer dificuldades.

Sacrifício é um tema mitológico poderoso encontrado em quase todas as culturas, um padrão arquetípico que exige a desistência de alguma coisa para que algo maior seja conquistado. Saturno é exatamente aquele que exige o abandono da dependência da infância em favor do domínio de si e da criatividade da vida adulta, mas fazer isso cortando o contato com o que se sente costuma gerar o oposto do que se busca, pois então nos deixamos abusar e nos tornamos abusadores. Simbolicamente falando, Saturno tem que ser o elemento complementar, o parceiro da Lua, e não seu inimigo ou substituto. Mesmo assim é o caminho mais comum que as pessoas costumam escolher. Como não temos mais os velhos sábios nessa sociedade que venera a juventude, as crianças acabam tendo que fazer suas iniciações entre si mesmas, o que é bem triste e sofrido. Quando vejo esses pais com medo da raiva dos filhos e/ou querendo “poupar” seus filhos do enfrentamento com a vida adulta, penso no que será que essas crianças terão que viver no retorno de Saturno para que possam assumir o fardo de sua jornada individual, com toda a dor e solidão que ela necessariamente traz. Como diz James Hollis, analista junguiano, ao falar da cura do masculino em Sob a Sombra de Saturno (Ed. Paulus, coleção Amor e Psique): “nenhuma outra pessoa, nem seus pais nem sua tribo, poderia poupar-lhe esta jornada porque senão também estariam roubando sua capacidade de lutar e alcançar seu pleno potencial”. É essa iniciação que os adolescentes buscam na época da oposição de Saturno, e isso lhes é negado há muuuitas gerações. Uma imagem que me parece boa para ilustrar essa carência de iniciação adulta é o “fenômeno” dos jovens milionários: homens que antes dos 30 anos já conquistaram tudo aquilo que se diz ser importante (que se traduz por dinheiro, muuuito dinheiro), que surgiu nos anos 90, com Urano e Netuno em Capricórnio, em trígono com Plutão em Escorpião. Que tal uma sociedade que tem como imagem de sucesso um menino branco, mimado e cercado de brinquedos? Você acha mesmo que isso trará verdadeira segurança?

Desde o início da Era Industrial somos ensinados a entregar nossos corpos e almas em troca de dinheiro para sobreviver, e agora nós e nossas crianças estamos nos dando conta de que temos que lutar para recuperá-los, pois esse preço é muito alto. Quando a nossa consciência muda, as nossas vivências simbólicas também mudam. Isso tem sido muito bonito e assustador de ver.

Uma das coisas importantes que aconteceu quando deixamos de ser tribais para construir civilizações, sociedades mais amplas e diversificadas, foi a perda gradual das iniciações masculinas, que transformava meninos em homens. Para se ter uma ideia de até onde fomos nisso, um livro lançado nos Estados Unidos no final dos anos oitenta com dados de uma ampla pesquisa feita durante mais de 10 anos, nos anos sessenta e setenta, citado em Finding Our Fathers: How a Man’s Life Is Shaped By His Relationship Whith His Fathers (“Encontrando Nossos Pais: Como a Vida do Homem é Moldada Pela Sua Relação com Seu Pai”, em tradução livre, ainda não publicado no Brasil), de Samuel Osherson, indica que apenas dezessete por cento dos homens norte-americanos tiveram relacionamentos positivos com os pais. Na maioria dos casos o pai estava morto, divorciado e ausente, quimicamente debilitado ou emocionalmente distante. Se essa estatística estiver ao menos perto da verdade e puder ser generalizada, isso significa uma quase total ausência de referencia masculina. De fato, é impressionante a quantidade de pessoas que foi criada quase que exclusivamente pelas mães ainda hoje em dia.  É compreensível, então, que muito do que construímos tenha como função substituir e/ou denunciar esse masculino que falta. Novamente, quem nos separa do universo materno infantil e nos leva até o mundo mais amplo adulto é aquilo que a psicologia analítica chama de Arquétipo do Pai, ao qual se liga Saturno, e que em nossas vidas ganha os primeiros contornos através da referencia de autoridade masculina da infância. Como não honrar profundamente todos esses homens que hoje em dia reivindicam o direito de serem pais, que se reúnem em busca de novos parâmetros de masculinidade, que aprendem a dançar com as mulheres, que se arriscam a tatear no escuro para encontrar uma nova maneira de ser no mundo? Mas abrir mão daquilo que se conhece em direção ao desconhecido não é exatamente o que precisa fazer o jovem herói que segue seu coração?

As iniciações femininas ligadas à mitologia da Grande Mãe, ao grande círculo, ao tema da morte/renascimento e ao Eterno Retorno, apesar de também terem sido violentadas de muitas maneiras, não podem ser totalmente esquecidas enquanto tivermos um corpo físico e vivermos a realidade de nascer através do corpo de uma mulher para depois morrer (o que parece ser uma tristeza para alguns neurocientistas e buscadores de Inteligência Artificial). Mas mesmo essas iniciações perdem muito do seu sentido sem uma face masculina complementar saudável e por isso acabam se distorcendo em algo muito grande, poderoso e perigoso, mais temido que reverenciado. Já a mitologia masculina fala da busca, da jornada da inocência em direção à experiência, das trevas para a luz, da saída do lar para o horizonte mais amplo, e isso significa responder ao chamado para algo desconhecido. Nesse sentido exige uma escolha do herói, e percebemos sua ausência nas enormes dificuldades que tanta gente tem de sair de casa, de abrir mão da dependência infantil e de experimentar uma existência diferente daquela em que se foi criado. Os sofrimentos ligados a Saturno tem sentido iniciático exatamente por evidenciar essas dificuldades e essa falta sem dar ouvidos ou espaço para as desculpas que nos damos para não assumirmos a responsabilidade do trabalho do nosso caminho, e essa é a verdadeira função paterna. Como disse a terapeuta e consteladora familiar Evanilde Torres: “É a partir do corpo do Pai que a vida explode para cada ser vivo. Por esta razão, Pai significa movimento, impulso. É através do nosso Pai que o mundo se abre como opção. Pai é tapa na bunda para impulsionar, é ‘levanta pra cair de novo’”. Cada ciclo mítico precisa ser cumprido várias vezes em nossa vida e a falta de um implica no desequilíbrio do outro. Hoje em dia, com a demanda que homens e mulheres enfrentam para a manutenção e exploração criativa do mundo ao mesmo tempo, precisamos mais que nunca desenvolver esses dois potenciais que nos pertencem e nos fazem inteiros.

Somos filhos de não iniciados, os manuais de instruções não funcionam e vivemos em uma sociedade decadente... Adivinhem onde vamos encontrar novos caminhos? Vai pra dentro, criatura! Uma das descobertas bacanas que C.G.Jung fez foi a de que o inconsciente busca sempre o equilíbrio e a cura, então é lá que podemos encontrar respostas que o mundo externo não tem. Jung chamava esse ir para dentro de individuação, e precisamos de coragem e um profundo desejo de conhecer a verdade para encarar essa aventura sem nos perdermos.

Nossos guias internos para esse universo inconsciente são as contrapartes opostas à nossa consciência de gênero, ou seja, os homens têm uma guia feminina que foi chamada de Anima e as mulheres tem um guia masculino chamado de Animus. Faz sentido que aquilo que nos oferece um caminho para o inconsciente tenha uma identidade oposta àquela que trabalhamos conscientemente, não? A Anima tem uma natureza de Eros, yin, passivo, ligada ao corpo, ao instintivo e às emoções, enquanto o Animus tem uma natureza yang de Logos, ligada ao mental, à ação e ao intuitivo. Ou seja, os homens falam com o inconsciente através dos sentimentos e as mulheres através do pensamento e da ação. Vocês conseguem ver o quão ruim são as caricaturas do homem que não sente e da mulher que não pensa? Não posso deixar de ver essas caricaturas de masculino e de feminino diretamente ligados à necessidade de homens e mulheres lutarem pelo direito de não serem humilhados e violentados. E claro que a melhor maneira de nos conscientizarmos desses elementos orientadores do inconsciente será através dos relacionamentos com pessoas do gênero oposto ao nosso (principalmente nos amorosos, mas não apenas), pois aqui temos a maneira mais automática e pessoal de projeção do nosso universo interno sobre o mundo externo. Buscaremos nos outros aquilo que pode nos mostrar quem somos. Claro que as primeiras pessoas a iluminarem esses arquétipos são nossos pais ou quem ocupou o lugar deles na nossa infância, tanto conscientemente, nos mostrando como homens e mulheres se comportam, quanto inconscientemente, servindo de projeção para nossa contraparte inconsciente de Anima e Animus. Com o tempo vamos colorindo essas figuras com outros encontros e no inconsciente temos uma fonte inesgotável de imagens para alimentá-las. A falta de figuras masculinas adultas e a onipresença feminina em nossas formações vão criar movimentos tanto conscientes quanto inconscientes, e nosso desafio é estar entendendo como essas partes agem para poder trabalhá-las a nosso favor, para que sejamos cada vez mais inteiros. Se as vivências com aqueles que nos criaram foram muito complicadas, teremos mais desafios na hora de trabalharmos com esses elementos inconscientes, os homens quando tiverem que trabalhar suas emoções e corporeidade individualizada e as mulheres na hora que expressam seu espírito em domínios coletivos, pois a tendência é de deixar o inconsciente agir de maneira livre demais para compensar os distúrbios conscientes. Isso costuma dar mais trabalho, afinal, aquilo que nós rejeitamos vai para o inconsciente, que aceita tudo, e aí vamos criar uma briga entre o que o inconsciente traz e a consciência que construímos de nós mesmos. E haja Rivotril para tentar aplacar essa briga... Isso será explicitado através dos relacionamentos com nossos afetos e desafetos do gênero oposto, onde nosso inconsciente se projeta para ganhar atenção e consciência. Agora, adivinhem com que tipo de forças Escorpião trabalha?

O elemento Água sempre tem um canal de comunicação com o inconsciente que precisa estar o mais limpo possível para que se viva bem onde esses signos dominam. Câncer tem esse canal via inconsciente familiar ou sistêmico, Peixes via inconsciente coletivo e Escorpião via inconsciente pessoal, que é exatamente esse campo onde nos deparamos com o estranho, o outro, o “não eu”, e projetamos nosso inconsciente. Transformamos o outro em símbolo daquilo que nos habita internamente e que não queremos ou não podemos ver. Por isso o signo de Escorpião, a casa oito e Plutão, estão tão associados à ideia de crise, no sentido de conflito mostrado pelo I Ching, onde o Céu Criativo tende a subir e a Água Abismal tende por sua natureza a descer (hexagrama seis) Aqui podemos ver o conflito entre nossa consciência racional e o material que foi parar no inconsciente por medo e/ou culpa, criando um abismo dentro de nós. As nossas ligações emocionais com os “outros” de nossa vida sempre nos forçam em direção à nossa natureza sentimental, que precisa ser primeiramente identificada e então examinada para poder ser transformada, e nada nos faz ir nessa direção mais rapidamente do que a frustração. A velha máxima satriana, “o inferno são os outros” é absolutamente real aqui. Saturno em Escorpião vai garantir que a relação com o “outro” entre nesse nível de conflito e obrigue a pessoa a passar por processos dessa natureza se ela escolher se transformar em adulto, e esse tipo de iniciação é realmente algo para quem tem coragem de ir fundo na vida. A única arma que eu consegui descobrir que funciona nessas circunstâncias é a verdade, a coragem para ver as coisas como elas são e a aceitação de que é assim que são. E gente, eu garanto que fazer Heliski no Himalaia ou BASE Jumping nas Torres Petronas de Kuala Lampur é para os fracos, pois quando o abismo está dentro, não há paraquedas que amorteça a queda. Mas só quando se experimenta pular é que se descobre que o abismo não era tão grande como parecia olhando de fora.

A grande força que Escorpião traz enquanto Água Fixa é aquela ligada às energias criativas e procriativas que esse signo controla e através dos quais entra em contato com os outros. Nessa esfera compreendemos que sexo tem pouco a ver com o contato físico entre as pessoas e muito mais a ver com forças emocionais e químicas, além de ser uma das vivencias que mais afeta o nosso universo mental. O fluxo que pode ocorrer durante o ato sexual entre duas pessoas por um breve segundo traz a experiência de perda da percepção individual e o vislumbre de se sentir um com outro ser humano. É nesse sentido que Escorpião se liga à ideia de morte, pois aqui temos a morte da personalidade consciente que se entrega para esse tipo de suspensão. Aliás, todos os tipos de transe que utilizam meios físicos de maneira proposital, como o uso de drogas psicotrópicas com fins religiosos ou não, as danças e ritmos hipnóticos, etc., também fazem parte dessa esfera Escorpião/casa 8/Plutão, pois têm como objetivo exatamente esse êxtase de esvaziamento do eu. Claro que depois, quando o eu recupera seus contornos e percebe as modificações que a união com o outro provocou, pode ficar bem temeroso. Que atire a primeira pedra aquele que nunca se retraiu frente ao medo da aparente vulnerabilidade emocional que o envolvimento maior com o outro traz. O que as terapias sistêmicas (como a constelação familiar, por exemplo) estão verificando é que depois que a união ocorre não é mais possível excluir totalmente o parceiro, mesmo que o mental acredite piamente nisso. Se isso é bom ou ruim, cada um deve fazer esse julgamento por si só. Como tem sido a sua escolha por parceiros sexuais? E mais importante, como você tem se comportado como parceiro sexual? Pois Saturno em Escorpião vai exigir um mergulho mais profundo nesse universo e cria a necessidade de um conhecimento prático de si mesmo e daquilo que buscamos no “outro” que nem todos estão dispostos a fazer. De qualquer maneira ele irá cobrar o preço pela nossa ignorância. Tem sido uma surpresa e uma alegria ver esse povo passando por esse Retorno de Saturno com tanta disposição de ir mais fundo, e que entendem exatamente o que quer dizer isso. Parece que a única coisa que Saturno exige para fazer a iniciação adulta é a disposição para ir além da esfera lunar materna conhecida. Saturno com certeza encontrará a parceria perfeita para você fazer isso.

A estratégia tradicional de Saturno para nos levar ao processo de crescimento consciente adulto é através da falta e da frustração que criam um imenso desejo de ter aquilo em nossas vidas, e para isso nos esforçamos nessa direção. Em termos míticos representa a parte em que o herói tem que enfrentar o deserto se quiser chegar ao seu destino. Com Saturno em Escorpião o mais comum é que isso se manifeste através de um histórico de falta de contato emocional mais profundo na família, seja por morte real ou por distanciamento afetivo, principalmente por parte do pai em se tratando do nosso titã. Algumas vezes há pouco contato físico com a criança em uma fase que essa é única maneira compreensível para ela, ou então os problemas sexuais dos pais criam uma atmosfera de medo e hostilidade que é captada mas não explicitada, deixando tudo muito confuso e trazendo problemas quando se trata de contato físico, e muitas vezes há realmente uma ameaça física à criança. Seja como for, se cresce com um sentimento de isolamento e uma certeza de que não se pode compartilhar essa sensação para aliviar a dor. Em As Máscaras de Deus, Mitologia Criativa (Editora Palas Athena, 1994), Joseph Campbell diz que “O deserto (...) é qualquer mundo no qual (...) a força e não o amor, a doutrinação e não a educação, a autoridade e não a experiência prevalecem na organização da vida, e no qual os mitos e ritos impostos e recebidos não estão (...) relacionados com as verdadeiras percepções, necessidades e possibilidades interiores daqueles em quem são incutidos.” Pois com Saturno em Escorpião (e também na casa 8), a pessoa busca união como água no deserto, e isso transforma as relações afetivas em algo muito intenso e com necessidades emocionais muito profundas. Assim como os adolescentes acreditam esconder o que sentem por traz de uma cara de mal e um comportamento rebelde, a nossa tendência ao se deparar com Saturno é ficar com tanto medo que se evita o assunto ou então se finge não ter nenhuma dificuldade com isso. Os perfis típicos aqui são do celibatário cheio de hostilidade para com os sexualmente ativos, e do abertamente promíscuo, que tenta seduzir qualquer coisa que apareça pela frente. Não é preciso análises muito profundas para perceber que temos nos dois casos um problema fundamental no relacionamento emocional com outra pessoa, e tanto em um caso quanto no outro se está preso na armadilha que Saturno joga quando em signos de Água, dizendo que se pode transformar um valor emocional em um valor material. Os dois sentimentos que mais nos deparamos quando se trata de Saturno são medo e culpa, que bloqueiam os dois chacras básicos, ligados à sobrevivência e ao prazer, e ao tentar não sentir isso teremos problemas de frigidez. Pronto, confirmamos nossos medos de não conseguirmos nos unir a outra pessoa, aumentando nosso medo e nossa culpa. É importante entender não sentir é uma defesa emocional, por mais fantasias de racionalidade que se coloque em cima.

Entramos nesse ciclo porque tentamos colocar em outras pessoas a possibilidade de curar as feridas iniciáticas de Saturno, criando uma fantasia mais ou menos consciente de que se poderá renascer e transformar a dor através de alguém que não tenha as restrições emocionais que se vê em si mesmo. As vezes demoramos muito tempo nos frustrando para aceitar que a falta que tivemos em nossa história não poderá ser preenchida nunca por coisa alguma, e que portanto temos que fazer algo com aquilo que vivemos em vez de criar ilusões para tentar apagar aquilo que nos feriu. Só quando a pessoa é suficientemente honesta consigo para entender que em seu íntimo há algo que precisa se desenvolver através do próprio esforço (como todo mundo), ela estará pronta para compreender e disciplinar sua natureza sexual de modo a expressar essa força de maneira positiva, em busca da conquista de uma real união, profunda e verdadeira, feita não apenas de fantasias celestes, mas de muito trabalho consigo mesmo, e independente de quem for sua parceria. Na verdade ninguém nasce pronto, e precisamos mesmo de muita experiência em ser quem somos para podermos ficar inteiros. O primeiro passo para isso quando se trata de Saturno em Escorpião é conseguir se revelar para o outro em sua fraqueza, sabendo que o outro não pode salvá-lo, e correr o risco de perdê-lo. Uma das coisas que mais alimenta o lado negro de Saturno é a vergonha que temos das nossas dificuldades naquela área. O intenso isolamento emocional que o Saturno escorpiniano nos remete faz com que essa vergonha seja quase insuportável, e a força que se tem que desenvolver para ultrapassá-la pode parecer demasiada. Saturno governa a estrutura óssea e é através dele que desenvolvemos a mente concreta ou científica, por tanto é através da tentativa e erro/acerto que experimentamos na nossa área saturnina que vamos conseguir criar uma estrutura capaz de realmente sustentar quem somos. Na verdade o revelar-se para o “outro” é um revelar-se para si, e nisso consiste a cura, em conseguir olhar para a própria dor sem se abandonar, mesmo que o “outro” faça isso. Através do nosso inconsciente temos essa capacidade incrível de transformar coisas, pessoas e vivências em símbolos, e assim criar imagens mágicas capazes de transformar nossa existência e nos fazer viver em diferentes níveis ao mesmo tempo. A imagem mágica, ou o símbolo, é portanto a máquina que transforma a energia psíquica. Ao nos revelar ao outro podemos ver com mais clareza também quem o outro é, e ver se realmente estamos disponíveis para aquela relação ou se apenas estávamos usando a parceria para a projeção inconsciente. Entendemos que a nossa percepção da realidade muitas vezes pode conflitar com aquilo que vivemos, e assim acolher todas as dúvidas e ideias que surgem desse confronto, trabalhando simbolicamente com esse material. Normalmente fazemos julgamentos morais a respeito dessas projeções e sofremos bastante, mas isso apenas significa que a estamos olhando com olhos da consciência, e se conseguimos seguir em frente e nos perguntar de onde veio essa “ilusão”, poderemos nos voltar para dentro e descobrir todo um mundo, com novos modelos e possibilidades de liberdade. Essa é a grande vantagem de se fazer terapia, onde se cria um ambiente seguro para treinar o revelar-se para o mundo. É por isso que sempre digo que a linha que o terapeuta segue é o menos importante, pois o que se precisa é alguém que possa receber as suas projeções, que possa se sintonizar com seu inconsciente, e isso se revela na primeira entrevista e não no curriculum do terapeuta.


Saturno não dá nada de graça, como Júpiter faz, e por isso mesmo podemos reconhecer com muita consciência o valor daquilo que conquistamos por seu intermédio. Saturno sempre exigirá a “disciplina imposta por você mesmo, sobre você mesmo” para que se possa conquistar a liberdade de expressão e de realização mais profunda. Se não tivéssemos uma certeza de alma a respeito do enorme potencial que existe em nós por baixo daquela falta/dor/ferida saturnina, essa dinâmica não teria tanta força em nossas vidas. O Saturno em Escorpião tem como tarefa básica aprender a ser sincero emocionalmente para poder sair do fosso de solidão que se caiu, passando por toda a raiva, impotência, rivalidade e frustração acumulada durante a vida. Uma das boas coisas que ganhamos quando aceitamos a tarefa de nos tornarmos adultos através de Saturno é que vamos aprendendo a escolher as lutas que valem a pena em vez de ficarmos brigando conosco o tempo todo, pois aprendemos a olhar e aceitar a realidade como ela é. A sensação íntima e dolorosa de ser vencido emocionalmente por quem se ama se transforma em uma capacidade refinada de avaliação de até onde o outro está disposto a ir sem se deixar prender por isso. Os poderes de cura e de vida disponíveis no inconsciente são infinitos para quem quiser buscá-los através do coração. A união íntima que se quer tanto fora só é possível através da relação amorosa com nossa(s) contraparte(s) interna(s), pois aí se pode amar ao próximo por se amar a si mesmo. Não consigo imaginar nada que seja mais bonito e poderoso que isso.


Hoje é dia dos pais, então dedico essa postagem ao meu, que me colocou no mundo e me deu o suficiente para fazer algo bacana com a vida que ganhei dele. Muita gratidão.