domingo, 1 de fevereiro de 2015

Quem Tem Medo de Mercúrio Retrógrado?

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc. 
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
Manoel de Barros


Continuo ouvindo histórias de terror quando se fala sobre Mercúrio Retrógrado, por isso vamos tentar olhar para isso de maneira um pouco mais ampla.

Duas coisas me levaram a estar aqui, buscando esse entendimento com vocês: a fala de um astrólogo bem bacana – ou seja, que pensa astrologia parecido comigo, hehe - chamado Tom Kaypacha Lesher (www.newparadigmastrology.com), que a amiga querida Tatiana Schreiner me apresentou, e umas gravuras Etruscas que caíram na minha mão e me encantaram, como essa de abertura da postagem. Etruscos era como os gregos denominavam o povo que habitava em cidades-estado a região que hoje seria a Toscana, entre os rios Arno e Tigre na Itália, em torno de 1200 e 700 a.C.

A maior parte das informações que recebemos dos povos da Antiguidade (período que vai da descoberta da escrita, aproximadamente 4000 a.C, até a queda do Império Romano, cerca de 476 d.C) vieram até nós através dos Gregos, que se transformaram nos relatores oficiais daquilo que “valia a pena ser conhecido”. Por isso sabemos bastante sobre os Egípcios e tão pouco sobre a Gália e a cultura Celta, por exemplo, pois os gregos viviam trocando figurinhas com os Egípcios, mas achavam que os Celtas eram uns bárbaros ignorantes.  Mesmo a astrologia, que tem referencias pré-históricas, chegou até nós através dos filtros gregos elaborados por Ptolomeu (90-167) – que era egípcio de nascimento e vivia  em Alexandria, também no Egito – através do seu incrível Tetrabiblos. Uma das dificuldades que isso nos traz é que muitas coisas que os gregos desqualificavam, são importantes hoje em dia para se compreender o mundo e as pessoas. Sem desonrar toda a importância do pensamento grego para a construção do mundo que conhecemos, uma das dificuldades mais problemáticas que herdamos da cultura greco-romana que nos constitui - em minha opinião - é uma incrível misoginia (do grego miseó = ódio, gyné = mulher). Quando se estuda mitologia greco-romana nos deparamos constantemente com o tema do estupro “necessário” para que mulheres se entreguem a homens e filhos possam ser gerados; as deusas mais louvadas são as que não exercem sua sexualidade – daí a maneira como a castidade feminina foi assimilada pelos cristãos -, além da substituição de elementos femininos, yin, como a força das Águas ou da Morte, por deuses masculinos, mesmo que as práticas cotidianas e iniciáticas ligadas a esses temas sejam exercidas por mulheres. Afrodite/Vênus parece ser a única que conseguiu conservar um pouco da força original, mesmo tendo sido rapidamente casada para mantê-la dentro de uma estrutura social aceitável. É sempre bom nos lembramos de que ela é fruto dos genitais de Urano que fertilizaram o Oceano (ou já podemos dizer a Oceano?). Essa é a razão pela qual eu utilizo a mitologia de outros povos para entender e explicar alguns elementos astrológicos e acredito que isso tem ajudado a ampliar minha compreensão e também a de meus alunos. Muitas vezes é através da leitura de mitos bem distantes dos Greco-romanos que aparece aquela luzinha de compreensão para meu Mercúrio. Então, e Mercúrio retrógrado com tudo isso?

Hermes-Mercúrio é o Macunaíma (o herói sem nenhum caráter de Mario de Andrade, que se você ainda não conhece vai adorar conhecer) da mitologia grego-romana. Já escrevi sobre o mito e as aventuras mercurianas, então só vou recordar aqui que Mercúrio é um deus amoral sem ser imoral, que ajuda e atrapalha heróis com a mesma desenvoltura, assim como exerce funções femininas e masculinas com o mesmo charme. Da união desse deus dúbio com a poderosa Afrodite-Vênus nasce Hermafrodito, o herói que não precisa definir seu gênero, pois contem os dois. Nas imagens dos Alquimistas Mercúrio algumas vezes aparece vestido de mulher e se casando com Marte-Ares (Enxofre), como nessa aqui de G. van Vreeswyk, alquimista holandês do século 17:



Podemos entender hoje em dia essas características mercurianas que simbolizam o pensamento humano de maneira muito mais científica, através das pesquisas feitas com o nosso cérebro, que mostram como temos realmente dois tipos de raciocínio, um baseado no lado esquerdo e outro no lado direito desse órgão, que funcionam simultaneamente. O lado esquerdo é caracterizado pelo pensamento abstrato, que utiliza uma lógica de causa e efeito, que olha as partes de algo e tenta juntá-las de uma maneira que faça sentido racional em uma esfera de tempo, e assim aprendemos e construímos a comunicação verbal e nosso aprendizado linguístico, a compreensão de regras e estruturas, etc. O hemisfério direito busca a compreensão do todo trabalhando com várias informações ao mesmo tempo e é por onde aprendemos a linguagem não verbal e construímos uma compreensão espacial/corporal. O bom funcionamento do nosso cérebro depende da boa comunicação entre os dois hemisférios, assim como o bom funcionamento da nossa sociedade e da nossa pessoa depende da boa comunicação entre homens e mulheres, entre yang e yin, masculino e feminino. Há quem diga que um lado é mais desenvolvido em homens e o outro mais em mulheres, mas hoje sabemos que nosso cérebro é treinado pela formação que recebemos, então na época que meninos ganhavam bolas e meninas bonecas tínhamos um lado mais treinado em homens e outro lado em mulheres. A carência de um lado significa dificuldades para o outro lado e comunicação exagerada entre os dois lados cria sobrecarga no corpo caloso, o feixe de nervos que liga um hemisfério ao outro, gerando convulsões tipo epiléticas.  Já vi Amor sendo definido dessa maneira: respeito entre duas partes que colaboram com seu melhor... Enfim, especula-se que nosso cérebro processa em torno de 400 bilhões de bits de informação por segundo, sendo que aproveitamos cerca de 2 mil para nossa consciência cotidiana do mundo. Apesar de não se conseguir ainda a confirmação exata desses números, parece que a proporção entre quantidade de informação inconsciente e consciente está correta. Por isso cada vez se tem melhores resultados ao se trabalhar com as ideias de sistemas complexos, fenômenos emergentes, campos mórficos e morfogenéticos, onde observamos e usamos os resultados a partir de processos muito difíceis de captar conscientemente, individualmente.

Pois então. A cada quatro meses mais ou menos Mercúrio parece se movimentar para traz no céu durante uns 20 dias, e chamamos isso de movimento retrógrado. Já falei sobre isso em termos práticos em outra postagem.



No cotidiano nossa mente está muito mais consciente das nossas atividades externas, e aí fazemos a lista de supermercado, xingamos o apressadinho que nos deu uma cortada no trânsito, conferimos o extrato do banco e lemos um texto técnico para o trabalho enquanto planejamos a viagem de férias, as contas a serem pagas, quando vai entrar o dinheiro que vou receber por aquele trabalho, em quantas prestações eu poderia comprar aquela moto, as dúvidas a respeito daquela resposta do chefe ser um elogio ou uma crítica, quando será que vou encontrar  novamente aquele homem interessante que conversei na padaria e onde foi parar o boné preferido do filho.  Os pensamentos são fenômenos emergentes, como qualquer sistema complexo, e Mercúrio, com sua capacidade de caminhar por todos os reinos e encontrar caminhos e atalhos através da Matéria, da Alma e do Espírito representa isso.

Acontece que quando Mercúrio está retrógrado as atividades externas ganham mais informações do que aquelas que precisamos para cumprir nossas tarefas. Aí nos lembramos do gosto do bolo de festa da mãe enquanto falamos com um cliente, surgem milhares de possibilidades mais interessantes do que aquele texto chato que precisamos ler, músicas estranhas que nos remetem a outros tempos surgem na cabeça (principalmente aquela que só lembramos uma frase horrível), sabemos exatamente o que queremos dizer, mas sem encontrar as palavras, lembramos de levar cangaprotetorguardasolcadeirachapeu para a praia e na hora de pagar o sorvete percebemos que esquecemos a carteira em cima da mesa. Isso significa em primeiro lugar que os tempos de Mercúrio retrógrado são para verificar como vai o seu humor e sua capacidade de rir de si mesmo. Tem muita gente que sofre durante os tempos de Mercúrio Retrógrado porque têm uma autoimagem idealizada de pessoa séria e focada, e aí quando vivenciam essas coisas precisam sair da zona de conforto e vivenciar um descontrole bem incômodo. Esses são períodos em que precisamos treinar pedir ajuda, o que também é muito incômodo para a maioria das pessoas, mas que é a melhor estratégia que encontrei: se você tem que assinar algum documento, peça para alguém que você confia dar uma lida antes; se você precisa apresentar algo para seu chefe ou para a escola, treine antes com alguém que sabe do que você está falando e escute as críticas e recomendações. Se der para adiar atividades que precisam de uma linha reta para serem resolvidas, bacana, mas você não vai adiar sua viagem de férias com a família, por exemplo, porque Mercúrio estará aparentemente andando para trás! Vai haver mais riscos de você perder a mala, principalmente se você não queria mesmo passar as férias na casa da sogra mas não conseguiu achar nenhum argumento suficientemente lógicos para mudar os planos para os Lençóis Maranhenses, além do “eu quero tanto”. Muitas vezes a lógica interna é diferente da lógica externa e isso fica evidente nessas épocas. Mercúrio retrógrado deixa em maior evidência a lógica interna, por isso tanta confusão.

Essas razões que a própria razão desconhece são atribuídas normalmente ao feminino, e, aliás, muitas vezes para chamar a mulherada fraca. Ou de louca. Ou de bruxa. Por isso ficamos tão receosos de confiar nessa outra racionalidade. Bom para ouvir música, visitar museu, dançar, ler novela e conversar com o inconsciente. Por que isso tem que ser assim horripilante, feito filme B de terror? Um pouco de cuidado e bom humor pode fazer com que esse seja um tempo bem frutífero. O seu trabalho exige foco mental? Você está em época de provas? Você tem um monte de coisas sérias e importantes para fazer e não tem tempo para fazer essas coisas? Então meditação por 20 minutos, 3 vezes ao dia, pode ajudar você a relaxar. Ou reservar algum tempo do seu dia e/ou da sua semana para fazer essas coisas para que elas não precisem invadir sua vida devidamente controlada. Realmente seria interessante que você começasse a viver esses dias de Mercúrio retrógrado como uma oportunidade de saber como você está com você mesmo, e não como algo que vai atrapalhar sua vida.

E é por isso que as gravuras Etruscas me fizeram pensar na alegria do Mercúrio Retrógrado. Os Romanos arrasaram a maioria das construções etruscas, que parece que eram tão avançadas como a dos próprios romanos, e só sobraram os túmulos. Aquilo que sabemos sobre esse povo vem, então, da relação que eles tinham com a morte, e ali encontramos homens e mulheres unidos e felizes, sexo abundante e muita gente fazendo música e dançando. Uma das funções de Mercúrio é de psicopompo (psyque = alma + pompo = guia), um guia da alma humana através dos caminhos até o reino dos mortos e de volta ao reino dos vivos. Podendo ele caminhar pelas polaridades da vida – céu e terra, nascer e morrer, dia e noite –, existe nesse planeta o potencial de trazer para a consciência uma compreensão muito mais abrangente e profunda do que a que estamos acostumados cotidianamente, quando Mercúrio se encontra retrógrado. Aqui pode estar a solução para o problema insolúvel, a verdade pressentida, a intenção não revelada. Seja no mapa natal ou no trânsito, vale a pena deixar a alma acompanhar Mercúrio em sua jornada, pois pode ser que ele te mostre algo muito melhor do que seu medo permitiria enxergar. 



Obs. Esse texto foi pensado, elaborado e publicado durante o movimento retrógrado de Mercúrio como um desafio para mim mesma. Escolhi um período em que, mesmo retrógrado, ele estaria em trígono com o Mercúrio do meu Mapa Natal, que afinal, né?.. Não foi o texto mais fluido para trabalhar, mas também não foi nada muito diferente do meu normal, e eu não tenho Mercúrio Retrógrado no mapa. Uma coisa bem interessante que aconteceu, foi encontrar muito mais informações não verbais. Eu tive que me controlar para não colocá-las todas aqui. Elas serão bastante úteis para as aulas desse ano...