sábado, 19 de abril de 2014

E Quiron Caminha Por Peixes


“Nada disso pode estar acontecendo de verdade. Se você se sentir mais confortável assim, pode pensar no acontecimento simplesmente como uma metáfora. Religiões são, por definição, metáforas, apesar de tudo: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um escritor irônico, um pai, uma cidade, uma casa com muitos quartos, um relojoeiro que deixou seu cronômetro premiado no deserto, alguém que ama você – talvez até, contra todas as evidências, um ente celestial cujo único interesse é assegurar-se de que o seu time de futebol, o seu exército, o seu negócio ou o seu casamento floresça, prospere e triunfe sobre qualquer oposição.
Religiões são lugares para ficar, olhar e agir, pontos vantajosos a partir dos quais se observa o mundo.
Então nada disso está acontecendo. Tais coisas não podem ocorrer. Nunca nenhuma palavra sobre isso é literalmente verdadeira.”
Neil Gaiman in Deuses Americanos


Em fevereiro de 2011 Quiron entrou em Peixes e ficará por lá até março de 2019. Em 2012 Netuno também entrou em Peixes e fez conjunção com Quiron. Desde o final do ano passado até o meio desse, Saturno em Escorpião estará em trígono com Quiron. Agora estamos com Júpiter, regente do ano, também em trígono com esse estranho asteroide-meteoro-centauro. O que ando observando esses anos é que Quiron vem se mostrando como sub tom de todos os processos mais profundos que andam ocorrendo nas vidas íntimas das pessoas, e a cada dia, a cada consulta e a cada aula isso fica mais claro. Também a cada sessão de terapia. O enorme barulho que Urano em Aries enquadrando-se com Plutão em Capricórnio vem fazendo (principalmente esse mês, com a enorme Cruz que envolve os Luminares, Mercúrio, Marte e Júpiter em um eclipse!), faz com que esse subtexto de Quiron pareça mais delicado ainda. Claro que estamos muito atentos para essa briga toda no Céu como na Terra em signos cardeais, que iniciam novos tempos e movimentam-nos para fora, mas esses movimentos sutis da alma muitas vezes nos levam a novos patamares de compreensão interna que podem muito bem nos trazer caminhos mais interessantes, principalmente quando é tão claro o quão doente estamos em nossa humanidade.

Quiron traz em si a dor mais profunda do paradoxo que somos enquanto seres conscientes capazes de transcender a própria individualidade, mas que existem a partir de um corpo físico mortal e limitado.  Por isso o tema central do mito de Quiron é a ferida que não pode ser curada (se você precisar de informações mais detalhadas a respeito, talvez seja melhor ler primeiro http://tecadias.blogspot.com.br/2008/09/quiron-visita-do-sbio.html). “Ferida” em grego é “traûma”, e os estudos dos traumas psíquicos têm sido das coisas mais interessantes que ando lendo ultimamente e tem me ajudado bastante a pensar sobre o que está acontecendo.

De maneira bem generalizada podemos considerar como traumatizante qualquer experiência que tenha sido rápida demais, forte demais ou ameaçadora demais para a existência. A palavra chave aqui é “demais”. Essa medida do que é demasiado para a criatura é absolutamente pessoal, pois coisas que são apenas um susto para alguns, se transformando em riso após 5 minutos, pode deixar outra alma absolutamente destroçada, criando uma situação em que não é possível nem correr nem lutar, como nosso cérebro réptil sabe fazer, e então algo em nossa psique se paralisa e se finge de morto para enganar ao predador. Essa é uma boa estratégia para o momento da ameaça, se conseguíssemos recuperar o movimento e a vida quando passasse o problema, como fazem os outros animais. O mais comum entre nós humanos, porém, é darmos um jeito de nos separarmos dessa parte para sobreviver, como uma lagartixa que deixa o rabo para traz e assim consegue escapar.  Só que essa parte da nossa psique nunca vai poder nascer de novo enquanto não curamos essa fragmentação e essa paralisação decorrentes do trauma, e nunca teremos o sentimento de sermos inteiros enquanto isso não acontece. Todos nós passamos por traumas de uma maneira ou de outra ao longo do nosso desenvolvimento: nascer, ganhar um irmão, entrar na escola, mudar de casa, perder um animal de estimação, presenciar uma briga entre os pais, achar que estava fazendo algo superbacana e ser duramente repreendido ou qualquer outra situação aparentemente normal pode criar um sentimento de vulnerabilidade sem saída que gera a paralisação da alma que é o trauma. Essas situações “cotidianas” podem ser mais difíceis de detectar por conta das explicações e justificativas que podemos acumular sobre elas, diferentes de situações mais claras de perda e/ou abuso físico, mental ou psicológico, claramente traumatizantes e externamente reconhecidos. Além disso, a genética moderna tem apontado para a possibilidade da expressão de um gene ser modificada por estresse traumático sem alterar o DNA subjacente desde 1941, com a “diversidade do efeito de posição” do geneticista vencedor do prêmio Nobel Hermann Joseph Muller. Essa modificação é transmitida por várias gerações, e isso significa que podemos também herdar traumas de nossos antepassados, que genes podem ser “ligados e desligados como um interruptor e os efeitos são transferidos, mesmo quando a situação inicial já passou. A expressão de genes muda, mesmo quando o hardware subjacente não é afetado” (Felsenfield, 2007). 

Olhando para isso com cuidado, podemos perceber que sentimentos bem difíceis como os de estar perdido na vida, de não ser amado, de vazio, de que falta algo ou que precisamos de algo que não vemos, de medo e vontade de fugir, de falta de vida e significado, com todas as suas manifestações emocionais básicas, como ansiedade, depressão e pânico – para falar das mais populares – e para as quais não encontramos explicações racionais, podem ser usadas exatamente para nos levar ao encontro dessa parte traumatizada que ficou no passado, paralisada e fragmentada, para que conseguíssemos sobreviver até nos tornarmos adultos e desenvolvêssemos os recursos necessários para resgatá-la. Enquanto isso não ocorre, o trauma nos “rapta”, nos envolve em um tipo de transe que nos remete novamente à situação traumática, nos fazendo reagir de maneira inadequada – ou excessivamente restritiva ou através de suporte inadequado – recriando o trauma e aprofundando nossa dor. Devemos a essa parte da psique que se sacrifica a nossa sobrevivência e realização adulta, e é a consciência desses sintomas que nos levam a buscar ajuda para fazer esse resgate. Quando se desiste de tentar colocar marido/esposa, filhos, pai/mãe, trabalho, ideologia, nicotina, álcool, comida, vida social, títulos, estudos, viagens, ou seja lá o que a gente tenha tentado empurrar buraco abaixo para enterrar de vez essa nossa parte e/ou substituí-la sem sucesso, Quiron se mostra como a nosso potencial mais importante para ser feliz, pois é aquele que sabe o caminho até a ferida imortal que carregamos e como fazer para resgatar aquilo que deixamos para traz e que agora, como adultos, precisamos para estar completos. É por isso que ele é o mestre de todo e qualquer aspirante a herói da mitologia greco-romana e um arquétipo tão poderoso de nossa psique. E afinal, o que mais nos mantêm vivos, enfrentando todos esses limites e frustrações de viver em um corpo físico cercado por um monte de outros seres igualmente limitados, senão continuar a acreditar que podemos ser muito muito felizes? Pois me parece que os sonhos de felicidade estão diretamente conectados com essa nossa parte traumatizada que espera por resgate.

E aí pegamos nosso cavalo branco, recebemos a benção de Quiron e vamos lá, resgatar nossa parte ferida, que sorri feliz em nos ver finalmente, né? Se isso acontecer tenha certeza que você está sendo enganado. Afinal, quem poderia receber sem muita desconfiança aquele que nos deixou ali para morrer, mesmo que possamos nos encher de explicações e justificativas muito razoáveis a respeito.

Quando Quiron e sua ferida começam a fazer contato com algo em nosso mapa, as coisas pouco a pouco vão se tornando bastante desagradáveis, para usar um eufemismo educado.

E a primeira parte da cura é exatamente desenvolver a capacidade de suportar a dor e sofrimento que esse fragmento traumatizado de si mesmo guarda e que Quiron aponta. O truque mais comum utilizado por Quiron é o de nos levar a uma situação que desejamos ou julgamos boa e então nos dizer que podemos ter muito mais se nos atrevermos a enfrentar a ferida que ele nos mostra e que compreendemos – muitas vezes como um estalo - como nos impede de sermos mais felizes. Essa primeira compreensão de que é o nosso medo/ansiedade/desconfiança que nos impede de alcançar a felicidade que buscamos, pois é essa barreira que nos leva a correr da vida ou brigar com ela, é o primeiro passo para nos atrevermos a olhar para isso com mais atenção. E o segundo é conseguir aguentar toda a raiva, frustração, rebeldia, mau humor, prepotência e acusação guardadas ali sem paralisar-se, nem brigar com isso e nem sair correndo de volta aos hábitos de amortização dessa dor. Então, depois de muitas tentativas e perseverança, você consegue ficar consigo mesmo nesse lugar desagradável sem sair correndo nem brigar consigo nem culpar o mundo (o Outro, o trabalho, o chefe, o orientador, a família, os amigos, a sociedade, a humanidade, etc, etc, etc ad infinitum) e merece o prêmio da felicidade eterna, certo? Vamos lá, amiguinhos: o herói que se aventura nos emaranhados da existência e acha que a brincadeira termina quando ganha o Reino – a princesa, o reconhecimento da humanidade ou a aprovação da mãe – acaba perdendo sua coragem e se transformando em um tirano. Para esses, que até fizeram um trabalho bacana, até conquistaram o Reino-princesa-reconhecimentodahumanidade-aprovaçãodamãe, mas pararam por aí, os greco-romanos criaram a Ilha da Bem Aventurança, governada por Saturno depois que ele perde a batalha com os filhos.  As descrições do lugar são bem bacanas também, parecendo férias no Caribe, com margueritas e camarões saindo da Cornucópia sem que ninguém precise mais trabalhar, um monte de outros heróis para bater papo e ficar lembrando as aventuras, um belo visual e boas ondas para surf matinal. Tipo capa de Caras, onde Jasão exibe seu Tosão de Ouro na estreia da nova banda de Orfeu. Muito bom para quem acha que Saturno é suficiente, já dá bastante trabalho e eu mereço algum descanso, puxa vida... Mas quando se trata de Quiron, podemos escolher ir além das férias no Caribe. Para se ter uma idéia de como isso é incomum e nem sempre possível, a mitologia grega tem apenas um herói que consegue isso, e em vez de ir para a Ilha da Bem Aventurança conquista um lugar no Olimpo junto aos deuses: Héracles-Hércules. Alcides para os íntimos. E é por isso que quando estudamos em mitologia as aventuras dos heróis temos histórias para cada um dos signos, preciosos ensinamentos morais e criativas discussões filosóficas, mas quando estudamos o mito de Hércules falamos de um processo de individuação. Algumas vezes uso o mito de Hércules para falar dos desafios de todos os 12 signos e das 12 casas através dos seus 12 trabalhos impossíveis. Não é coincidência que tenha sido exatamente Hércules quem fere a Quiron, trazendo para seu corpo sua ferida incurável, sua dor insuportável de alma para a consciência. De muitas maneiras, Hércules é o anti herói, sofrendo de demência, sendo humilhado, aviltado, traído, possuído por orgulho, matando e ferindo a quem ama, cheio de fraquezas e brutalidade. E é exatamente essa falta de virtudes que o encaminha cada vez mais profundamente para a busca de purificação, encontrada finalmente através da própria morte. Mas essa não é qualquer morte, mas sim a morte-ponte, que conduz da morte dos mortais à morte que imortaliza. Assim também é a morte de Quiron, que não é a morte para fugir da dor, que seria a morte suicida, mas a possibilidade de ir além da dor, ver o que está acontecendo e fazer o que se tem que fazer para se purificar e contribuir com o coletivo.

Pois Quiron está agora em Peixes, o último dos signos do Zodíaco, nesse fluxo com os outros signos de Água através de Saturno e Júpiter. Se Ar nos traz a capacidade de compreender e comunicar, Fogo nos dá o desejo de criar e agir, Terra nos mostra a forma do que queremos e do que somos, Água fala da Vida que flui através de nós. Esse elemento é o que falta para os cientistas que acham que podem criar vida inteligente, aos economistas que acreditam poder prever a história, aos artistas que tentam controlar sua criação. A Água destrói quando em excesso e também quando falta, por isso é preciso estar sempre atento a seus movimentos e aprender a conversar com ela para manter-se em equilíbrio. Quando tentamos descrever esse elemento, falamos de alma, de inconsciente, de psiquê, de emoções, sentimentos e uma série de outras coisas e conceitos que experimentamos, mas sabemos mesmo muito pouco como traduzir. Ainda entendo o elemento Água como nossa possibilidade de Mágica, e isso é muito desconcertante. Principalmente quando tenho que falar sobre ela usando conceitos e não imagens/poesia/música/dança etc. para pessoas que ainda acham que o Ser Humano é especial por suas capacidades mentais e neurais e que isso que chamo de mágica é loucura ou inocência, numa escala menor de valores e conquistas.

Quando falamos de Quiron em Peixes, falamos da ferida que temos na Alma Humana em sua conexão mais profunda com todos os seres. Ou se você prefere uma linguagem simbólica psicológica, na nossa conexão com o Self, o centro do nosso ser e ao mesmo tempo do Inconsciente Coletivo. Essa cisão é representada pelos dois peixes nadando em direções opostas, mas presos por um fio de ouro, e Quiron, com a ajuda dos outros planetas em Água, está apontando para isso e mostrando maneiras de irmos mais fundo. Se quisermos.

Podemos pensar em Saturno em Escorpião como a necessidade de encararmos e fazermos algo de concreto com nossos desejos, medos e apegos mais pessoais e Júpiter em Câncer como a possibilidade de criarmos vínculos profundos para além da família de sangue – inclusive com a própria família de sangue. A possibilidade de olharmos com mais profundidade a ferida de alma que carregamos pode ser muito mais rápida e profunda do que esperamos, estando Quiron tão bem apoiado e sustentado. Sim, isso significa ter também que fazer as tarefas saturninas e correr os riscos jupiterianos. As curas proporcionadas por Quiron são aquelas da consciência que conquistamos através da auto reflexão e auto observação, por praticas como meditação, yoga, caminhadas, revisão diária ou qualquer outra coisa que ajude a construir um olhar objetivo sobre o que se passa dentro de nós. Quiron nos mostra que somos capazes de olhar para nosso próprio sofrimento com compaixão sem nos deixar “raptar” pela dor, e assim fazer o que tem que ser feito para a cura. Isso muitas vezes vai significar o sacrifício de algo importante, como deixar ir um relacionamento que traz frustração e dor, ou deixar de lutar para obter o reconhecimento por algo que se merece, mas que custaria o abandono dos valores internos, ou mesmo passar por algo que seja dolorido e difícil entendendo que não se trata de algo pessoal, que os personagens da história não tem como saber o que está acontecendo desde o seu ponto de vista. Isso é mais do que desapego motivado por alguma crença religiosa ou moral. É a capacidade de permanecer consigo mesmo quando as coisas não são como devem ser, é aceitar a morte daquilo que aparentemente é tão precioso em nome de uma capacidade de olhar para si com compaixão, sem pena ou vitimismo, e ir além. Só depois de vivenciar isso podemos entender que o Amor que estava sendo desperdiçado naquele relacionamento permanece consigo, que o Mérito que não foi reconhecido externamente é realmente seu, que a vivencia dolorosa tem uma parte de responsabilidade pessoal que pode ser transformada independente do que os outros façam com aquela experiência. E isso cura. E nos torna mais compassivos com relação às dores dos outros também.


E como amanhã é Páscoa e festejamos a libertação, espero que possamos estar aproveitando bem esse tempo estranho em que vivemos para irmos além. Segundo o mito, Deus ressuscita em corpo, com todas as suas chagas e feridas reluzentes, e se apresenta em Sua Gloria primeiramente para Maria Madalena, aquela que não foi condenada e se tornou a padroeira dos ciganos. Eu acho isso lindo, e precioso de ser comemorado.