“Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre
os animais domésticos e sobre toda a terra (...)’. Deus criou o homem à sua
imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. (...) E assim se
fez. Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom”.
Gênese 1
– 26.31
E enquanto Deus descansava de seu grande trabalho de criar o
mundo, Adão só queria fazer sexo papai/mamãe e a primeira mulher se revoltou
com essa falta de criatividade. Segundo o Alfabeto de Ben-Sira (600 – 1000
d.C.), que encontrei na Wikipédia, Adão e Lilith começaram a brigar e Lilith
disse: "’Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob
teu corpo? Por que ser dominada por ti? Contudo, eu também fui feita de pó e
por isso sou tua igual.’ Quando reclamou de sua condição a Deus, Adão retrucou:
’Eu não vou me deitar abaixo de você, apenas por cima. Pois você está apta
apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou um ser superior.’ Lilith respondeu: ‘Nós somos iguais um ao
outro, considerando que ambos fomos criados a partir da terra’. Mas eles não
deram ouvido um ao outro. Quando Lilith percebeu isso, ela pronunciou o Nome
Inefável (que é o nome de Deus) e voou para o ar. Adão permaneceu em oração
diante do seu Criador: ‘Soberano do universo! A mulher que você me deu fugiu!’.
Ao mesmo tempo Deus enviou três anjos para trazê-la de volta.”
A lenda continua dizendo que quando os anjos a encontram,
Lilith se nega a voltar para Adão, e então esses seres sensíveis como um bando
de rinocerontes sem Rivotril a ameaçam de afogamento se ela não obedecer. A Lei
Maria da Penha ainda não tinha sido aprovada no tribunal divino, pelo jeito.
Ainda por cima rogam a praga de que ela irá perder cem filhos por dia, o que a transforma em uma ameaça para recém-nascidos. Aí ela se alia aos
anjos caídos e se transforma em demônio. Pois comecei a pensar em escrever
sobre a Lilith enquanto acompanhava as várias “Marchas das Vadias” e “Marchas
pela Humanização do Parto” pelo Brasil e sempre me vinha imagem de um monte de
Liliths dizendo “eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual”.
Vamos olhar algumas imagens que peguei nas páginas do Facebook
da Marcha das Vadias de Brasília e da Marcha do Parto em Casa antes de falarmos
da Lua Negra e sua equipe de
demônios:
E aqui algumas campanhas desses dois grupos
Lilith é aquele aspecto humano (sim, de homens e mulheres), que
não pode obedecer aos mandatos da
cultura vigente que signifiquem injustiça ou opressão, mesmo que esses mandatos
venham com rótulos de virtude ou civilidade. Na
Cabala, (Patai 81: 455f) ela é referida como a serpente que levou Eva a comer o
fruto proibido e alguns filósofos, a partir do Romantismo, utilizaram a
metáfora de Adão e Eva comendo do fruto da Árvore do Bem e do Mal para falar do
inicio da vida consciente do Ser Humano. Nesse sentido é que a Lilith em nosso
mapa nos obriga a uma maior consciência sobre o Bem e o Mal, pois é um ponto
onde não podemos nos acomodar ao status quo, onde um instinto mais forte de
vida tem lugar, onde existe a crença de que acomodar-se é igual a se deixar
afogar, e a única maneira de se lidar com isso é através da consciência do que
é marginalizado em nós.
O encontro desse ponto orbital demorou muito tempo, assim como
a nova consciência que Lilith nos traz demorou em ser aceita nas nossas psiques. Os primeiros registros astronômicos que falam
de Lilith apareceram na mesma época em que Netuno foi avistado, em 1846, e
compartilha com ele, além de muita confusão, esse lugar misterioso e cheio de
ilusões. Frederic
Petit, diretor do observatório de Toulouse, na França, anuncia nesse ano a
descoberta de uma segunda lua da Terra, podendo inclusive calcular sua órbita. Muitos
profissionais e amadores passaram a olhar para o céu em busca desse segundo
satélite da Terra. Os relatos dessa segunda lua falavam de um corpo nebuloso ou
nuvem de poeira, difícil de identificar, somente podendo ser observada nas
noites de Lua Nova e em posição diretamente oposta ao Sol. Em 1898, o Doutor
George Waltemath, de Hamburgo, comunicou ter descoberto um sistema de pequenas
luas da Terra, fornecendo elementos orbitais de uma delas, predizendo que
passaria em frente ao Sol em fevereiro de 1898. Em 1918, Sepharial, um
astrólogo de renome, começa a fazer investigações a respeito dessa lua de Waltemath,
chamando esse satélite hipotético de Lua Negra ou Lilith, interpretando-a
como um satélite escuro, obstrutivo e fatal, abrindo um novo campo de pesquisa
para os astrólogos. Com os elementos orbitais de Waltermath, calculou suas
efemérides para uso astrológico. Quando os primeiros satélites artificiais foram lançados em 1957 e 1958, porém, se
verificou que aquilo que se consideravam luas terrestres, na verdade, eram meteoroides
que tocam a atmosfera superior e perdem velocidade, fazendo com que alguns
deles entrem em órbita, com um número de revoluções entre uma e cem, por um
máximo de tempo de 150 horas. É possível que aquilo que Petit e Waltermath avistaram se referisse a um desses satélites
efêmeros (obrigada Dani Rossi).
Mas antes mesmo dos satélites artificiais acabarem com a
ilusão de outra lua orbitando nosso planeta, os astrólogos começaram a
pesquisar a Lua Negra através do apogeu lunar, conforme proposto por Don Néroman, fundador do Collège Astrologique
de France em 1933 - mesma época em que Plutão
foi descoberto -, e que usamos até hoje.
Vamos entender o que é esse apogeu lunar, então: a Lua descreve
uma trajetória elíptica ao redor da Terra, assim como os planetas ao redor do
Sol. Como a elipse possui dois pontos focais, a órbita lunar é uma elipse que
tem um dos focos no centro da Terra; e o foco vazio, que coincide com o apogeu lunar verdadeiro, é a Lua Negra
ou Lilith, conforme esse conceito de Néroman. A projeção do apogeu da Lua no
zodíaco (Lilith) desloca-se 6 minutos e 30 segundos por dia, 40 graus ao ano,
percorrendo um signo zodiacal a cada 9
meses e levando 3.232 dias para dar uma volta completa no zodíaco, aproximadamente, 9 anos.
Como Plutão e Lilith foram descobertos na mesma época, alguns
astrólogos acham que a Lua Negra é a contraparte
feminina de Plutão, mas a Lua Negra parece trazer para nós a distorção das
forças de todos os astros: egocentrismo (Sol), mágoas (Lua),
dissimulação (Mercúrio), luxúria (Vênus), agressividade (Marte), exagero
(Júpiter), rigidez (Saturno), rebeldia (Urano), ilusão (Netuno), sede de poder
(Plutão). Um verdadeiro instrumentum
diaboli essa menina, não? Na prática o que observamos é que todas as
distorções que não conseguimos aceitar e elaborar conscientemente nas áreas em
que atuam os outros astros irão se manifestar no ponto onde encontramos nossa
Lilith, principalmente do regente do signo em que ela está. Isso pode ser tão
perturbador quanto um sonho erótico para um celibatário, pois obriga a um
questionamento a respeito de quão dignos somos de nossas escolhas conscientes.
A Lua visível e a Lua Negra estão diretamente conectadas,
assim como Lilith e Eva. A Lua precisa do princípio masculino representado pelo
Sol para ser vista, assim como Eva precisou da costela de Adão para vir ao
mundo. A Lua em nosso mapa representa exatamente a nossa importantíssima
capacidade de adaptação ao mundo, de criar vínculos afetivos e a possibilidade
de segurança emocional nessa vida. Nosso satélite se associa à imagem da Mãe
exatamente porque representa a parte receptiva do processo criativo, que precisa
desenvolver cuidado e confiança na Vida para que o novo possa amadurecer e vir
ao mundo. Mas quando nossa receptividade lunar, que se entrega ao princípio
ativo com confiança e alegria, se distorce em medo, paralisia, estagnação,
vício e dependência, teremos problemas sérios. É então que precisamos
reverenciar nossa Lilith, mesmo que nos pareça um impulso demasiado primitivo e
incivilizado. Não para tornarmo-nos histéricos malucos que saem matando e
vampirizando, além de comer criancinhas, como falam algumas lendas que
demonizam Lilith, mas porque, como nos ensina o Guia do Pathwork, “todos
precisam fazer contato com a sua crueldade, brutalidade, sadismo, sede de
vingança e malícia oculta para aprender realmente a superar essas emoções
destrutivas, vendo-as, entendendo-as e aceitando-as. Só então podem
convencer-se genuinamente de que não há necessidade da destrutividade. Enquanto
a destrutividade não é encarada, fica faltando essa convicção e ela é contida
principalmente por se temer a retribuição e outras consequências. Somente
quando se tem a coragem e honestidade de ver e aceitar totalmente as emoções e
desejos danosos do interior, apenas quando estes são completamente
compreendidos e avaliados é que se pode ver, sem sombra de dúvida, que eles são
supérfluos como defesas e que não servem a nenhum outro propósito.” (PW 169). Esse é o
caminho para integração de Lilith.
Quando analisamos a Lilith astrológica olhamos para um ponto
totalmente insensível a vitimismo, imaturidade emocional ou sentimentalismos de
novela. Aqui temos o foco vazio da órbita lunar, e por isso associado a
sentimentos de falta, de perda, de ausência, de frustração, de coisas
insatisfatórias que precisam ser bem compreendidas para que haja realmente
integração. Quem pode nos orientar de maneira muito boa nesse caminho é Carl
Gustav Jung, que possuía uma forte Lilith sagitariana em conjunção com o Meio
do Céu e em oposição a Plutão. Jung diz que um dos primeiros passos rumo à
individuação – processo de nos tornarmos quem somos interiormente –, de maneira
geral, é o confronto com nossa Sombra, pois ao abordarmos o inconsciente a
partir de nossas próprias raízes psíquicas, não vamos nos deparar com nenhuma
“luz interior”, mas com uma espessa camada de conteúdos pessoais reprimidos. Isso
representa, ao menos para nós criados em uma cultura ocidental, um conflito
moral doloroso. Como ele mesmo relata em suas “Memórias, Sonhos e Reflexões”:
“nada pode nos poupar o tormento da decisão ética. Não obstante, por mais duro
que possa soar, devemos ter, em algumas circunstâncias, a liberdade de evitar o
bem moral conhecido e de fazer o que é considerado mal se nossa decisão ética
assim exigir.” Para isso é necessário muito autoconhecimento, que revela à
pessoa o que há nela de luz e de trevas. Isso é precisamente o que as pessoas
desejam evitar, pois parece melhor projetar o mal em outra pessoa, nação,
religião, classe, etc. Onde temos Lilith, essa projeção traz sofrimento e exige
responsabilidade, ou, como diz Marie-Louise von Franz (C. G. Jung, Seu Mito em
Nossa Época): “o malfeito, pretendido ou pensado, se vingará em nossa alma: o
ladrão rouba a si mesmo, o assassino mata a si próprio.”
Existem duas maneira de se representar a Lilith no mapa. O
mais comum nos programas de computador é um circulo com uma lua minguante
dentro, mas o mais significativo é esse:
Que mostra uma ligação muito interessante com este, de Saturno:
Tanto Lilith quanto Saturno compartilham a fama de malignos e
de criadores de frustração. Para mim, Lilith tem significado muito mais como lado
feminino de Saturno do que de Plutão. Para apaziguar Lilith é preciso dos
mesmos recursos usados para Saturno: seriedade, responsabilidade e paciência.
Assim como Saturno quando trabalhado e integrado nos traz estrutura e
autoridade internas que nos permite enfrentar com maturidade as aventuras da
vida, a integração de Lilith nos traz a possibilidade de experimentar por
inteiro a aventura de ser vivo, de
se entregar à vida com maturidade e consciência.
Desde muuuuuito tempo o prazer feminino tem sido associado a
algo ruim e não civilizado, inclusive relatos médicos da Idade Média pregavam
que o orgasmo feminino prejudicava a concepção de filhos. O rótulo adotado para
as pessoas com doenças psicossomáticas em geral e descontroladas em particular
como histéricas – do grego hysterikós, relativo ao útero – já fala o
suficiente sobre isso. Lilith traz a humanização do feminino. Durante os
últimos nove meses, com a passagem de Lilith pelo signo de Touro, milhares de
mulheres, com o maravilhoso apoio de muitos homens, foram às ruas mostrando
peitos, barrigas e pernas para exigir respeito, cuidado e responsabilidade.
Essa postagem é minha pequena homenagem a elas e também uma homenagem à minha
Lilith, que, assim como Saturno, tem me mostrado um caminho de integridade.
Salve Lilith! Salve Nanã, Yemanjá, Oxum e Yansã (salve Lucia
Cordeiro!)! Salve Eva, Maria e Madalena! Porque Deus contemplou toda a sua obra,
e viu que tudo era muito bom.
4 comentários:
Salve as Lilith's que há em nós!
Ahow
Boa tarde Teca, gostei muito do texto. Como ativista de gênero fico muito feliz quando emcontro ima leitura astrológica (ou espiritual) que questiona os essencialismos sobre os quais nossas crenças são construídas. Parabéns!!
Depois de ler o texto fui conferir a Lilith no meu mapa natal. 0'5 graus em sagitário na casa 8, conjunção com a lua (2,27 graus em sagitário) e conjunção com urano (27 graus em escorpião na casa 8).
Me parace uma configuração bem forte mas encontro pouca informações sobre Lilith na Internet.
Alguma sugestão??
Cícero Bezerra
Super Lilith essa sua, hem Cícero? E a conjunção com a Lua Branca - essa que a gente vê no céu - faz com que a expressão dela fique bem marcada mesmo. Tenho encontrado bastante pessoas que militam nessa área de gênero com combinações como essa. Urano ajuda na parte ideológica de liberdade de expressão.
Mas temos realmente muito pouca coisa sobre a lua Negra, tanto na internet quanto na literatura em geral. O melhor livro que encontrei até hj sobre Lilith é o do Roberto Sicuteri, um psicanalista junguiano, "Lilith, A Lua Negra", da editora Paz e Terra, que tinha uma coleção muito bacana chamada Psique. Não sei se foi reeditado - esse meu exemplar é de 1985 - mas acho que vc encontra na estante virtual. Não é de astrologia, mas traz muitas boas análises sobre os significados desse feminino selvagem. "Mulheres que Correm com Lobos", da Clarissa Pinkola Estes, Editora Rocco, que vc deve conhecer, também fala muito e de maneira muito rica, sobre essa mulher que se recusa em ser domesticada, e como fazer bom uso disso. O resto é auto observação e troca de figurinhas com as pessoas ao redor. Afinal, tenhamos ou não consciência disso, temos todos uma sábia mulher selvagem ao nosso lado...
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