“Somos um olho por meio
do qual o mundo exterior se faz visível, mas um olho que não pode ver-se a si
mesmo quando vê”
Rüdiger Safranski
Tive uma série de problemas no mundo virtual que andaram me impedindo de escrever aqui. Aproveitei para estudar um pouco de filosofia do século 18 para ver se conseguia entender umas coisas que Urano estava me fazendo pensar, agora que ele transita por Áries e começa um novo ciclo zodiacal. Com o blog se reabrindo de novo pra mim (obrigada Rui Alão!!), volto o compartilhar o que andei pensando com vocês.
Durante o
século 16 o mundo começa a se transformar em algo completamente diferente
daquilo que era até então. Copérnico deixa para nós, após sua morte em 1543,
“Das Revoluções das Esferas Terrestres”, tirando a Terra do centro do Universo
e a colocando na terceira órbita em volta do Sol. Lutero se rebela contra as
indulgências da Igreja Católica e publica sua tradução da Bíblia para o alemão
vulgar em 1534, tirando da Igreja o monopólio sobre as interpretações da
vontade de Deus e da essência da Vida.
Com o Ser
Humano mandado para um canto do Universo e os guardiões da metafísica
destituídos de seu poder, a teologia deixa de ser a base necessária para o
conhecimento, e se inicia uma busca empírica pelos saberes do mundo. A ciência
que nasce no século 17 tem como principal expoente Galileu Galilei, que junta
observação experimental com descrição teórica de fenômenos, criando leis naturais
explicadas através da matemática e confirmadas através de suas observações concretas. Deve ter sido ele que criou o ditado "contra fatos não há discussão".
Esse novo
lugar no Universo modifica nosso olhar para a vida e para nós mesmos. A busca pelo conhecimento com base empírica e não mais teológica nos faz
desenvolver a capacidade de encontrar outras respostas para as “questões
finais” filosóficas (imortalidade da alma, liberdade/livre arbítrio, existência
de Deus, princípio e fim do mundo), que sustentam a religião e o Homem no
Mundo, sem que precisemos recorrer à metafísica. O nome que damos a isso é Racionalidade. Nasce
assim a biologia, a mineralogia, paleontologia e também a antropologia, a
ciência política, a economia, pois a ideia de que “a natureza tende à
organização”, deixa de ser uma máxima que nos obriga a acreditar em Deus e
passa a ser uma porta para se entender a Natureza e o Mundo em que vivemos.
Quando Rene Descartes (1596-1650) aparece no século 17, há uma busca por motivos racionais para a existência de
Deus. Ele sai do pressuposto de que assim como existe o mundo, Deus tem que
existir. Na verdade o que Descartes acaba demonstrando é que Deus é uma
ficção necessária a partir da autorreflexão da razão. Sua famosa frase “cogito
ergo sun” (penso logo existo), quer demonstrar que o exercício da razão é a
maneira que Deus tem de se expressar no Ser Humano: “Não sou eu que me aproprio
de Deus através do poder da minha razão, mas bem o contrário: é Deus que toma
posse de mim enquanto exerço minha razão”. Essa tentativa de usar a
racionalidade para conhecer a Deus ainda sai do pressuposto de que o mundo é um
reflexo de Deus, mas abre as portas para os Empiristas, que buscam conhecer o
mundo através da atividade racional e da confiança na percepção sensível.
Quem
se contrapõe a essa ficção de Descartes é Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que inverte a
proposição cartesiana ao afirma não ser possível o pensamento antes da
existência: “primeiro preciso existir para depois poder pensar”. Rousseau
combate toda ideia de um Deus revelado – o que enfurece católicos e
protestantes – e o coloca no coração dos Seres Humanos: “quantos homens entre
mim e Deus!”, costumava dizer. Isso significa que o conhecimento só é possível
a partir da experiência interna que se tem de um mundo externo. Ele percebe que
as várias maneiras de se experimentar o mundo através dos sentidos precisa de
um princípio organizador que é chamado de Eu. O “visto” e o “tocado”, por exemplo, se
converteriam em 2 objetos diferentes por meio apenas da percepção do mundo
exterior. Somente um “Eu” é capaz de realizar a síntese e coloca-los em conexão
como sendo um único objeto. Portanto é a identidade do Eu que garante a unidade
dos objetos exteriores a si. Assim nasce a ideia de um Ego psicologicamente
equipado para experimentar e conhecer a vida humana.
Sem um “Eu”,
não há um “Outro”, e, assim a percepção do Eu é que produz o “Ser” individualizado. A Percepção
e o Conhecimento passando a ser um fenômeno psicológico de autoconsciência faz do Eu o responsável de compor e instalar o mundo através do prazer, da
intensidade, da alegria de viver, da tristeza, etc. O Ser Humano deixa de ser expectador
para se tornar o diretor da vida: “o ser humano (...) tornou-se capaz de
recolher todas as riquezas que haviam sido anteriormente espalhadas pelo céu”. Ao
se entender que os antigos tesouros da metafísica eram obras das mãos humanas, ficaram
todos muito animados com esse poder, mas logo essas riquezas perderam sua magia
e se mostraram incapazes de cumprir suas promessas. Nasce daí o temor da
História construída por nós mesmos.
Urano, o
sétimo planeta a partir do Sol e o mais massivo de nosso sistema, foi avistado
pela primeira vez em maio de 1781, rompendo as fronteiras do Universo que até
então eram guardadas por Saturno. Esse foi o primeiro planeta avistado por um
telescópio, portanto fruto dessa nova mentalidade que surge no século 18 que
tenta conhecer o mundo de maneira racional e não mais teológica, aperfeiçoando
seu olhar sobre a natureza e o Ser Humano. Esse é um tempo de grandes
avanços de nossa capacidade técnica. Queremos ver mais longe,
ouvir mais acuradamente, expandir nossos sentidos físicos para conhecer o Mundo
e o Humano. Essa é a consciência que Urano nos traz. Saturno nos mostra as regras
e dogmas sociais, que temos que conhecer e aprender a usar se quisermos ultrapassá-los, e
Urano atua no sentido de mostrar que essas regras e dogmas são obras humanas, e,
portanto, podem ser construídas e desconstruídas a partir da busca por valores
e conceitos que nos tornem mais livres enquanto humanos. Kant aparece
nesse contexto em busca do “a priori” do pensamento humano para entender o como
e o que se pode conhecer.
Immanuel Kant (1724-1804) mostra que conhecemos através da intuição e
utilizando o espaço e o tempo concreto. Ele reconstrói minuciosamente nossa
maneira de pensar o mundo através de 12 categorias do entendimento. O nosso
entendimento é a faculdade que temos de usar conceitos que nos possibilitam
fazer juízos. Os Juízos são divididos por ele em 4 formas e 3 tipos (Relação: a mesa é de
madeira; Hipótese: se colocar água sobre
a mesa ela se mancha; Disjuntiva: se é verdade que isso é uma mesa então não é
um fogão). O que ele quer demonstrar é que o conhecimento humano tem como
aprioridade a apercepção, ou seja, a capacidade de perceber e interpretar os
estímulos sensoriais. Esse conhecimento só pode ser feito através de um
“sujeito” que percebe o mundo antes de se defrontar com a experiência concreta
material, e através disso constrói representações de si e do mundo que permitem
o entendimento de sua existência concreta.
Uma das consequências dessa compreensão que me
interessa destacar aqui é a de que o nosso pensamento deixa de nos ligar ao
transcendente, pois não estão além da
experiência, mas são transcendentes
em si, pois existe antes da experiência, criando conceitos onde as nossas
experiências pessoais fazem sentido: “se as submetemos a um exame cuidadoso
perante nosso olhar intelectual, transcenderemos
a experiência em direção às condições da possibilidade da experiência (construiremos
conceitos), ou seja, (em sentido) horizontal, mas não verticalmente”. Resumindo: “não existe
nenhum caminho que conduza do Transcendental ao Transcendente”. Isso significa
que nossa razão humana não tem como conhecer a “Deus”, o “Absoluto”, a “Causa
Primeira”, ou seja lá como você queira chamar aquilo que criou o mundo e o ser
humano. O Transcendente, que Kant vai chamar de “Coisa em Si” é aquilo que não
podemos apreender e nos escapará sempre, pois nosso conhecimento depende dos
órgãos de percepção que sempre projetará sua sombra sobre o que é captado. O
que fazemos ao conhecer o mundo é criar representações. Nosso entendimento vem
da ordenação dos elementos obtidos pela experiência, mediante o princípio de
causa e efeito (causalidade) e de necessidade.
Portanto, a causalidade e a
necessidade são os princípios da nossa mente projetados de dentro para fora
sobre o mundo. A principal consequência disso é que não podemos deduzir a
existência de Deus como causa primeira da existência do mundo (como fez
Descartes), ou como primeiro motor (como descrito pelo mecanicismo), ou o “Arquiteto
Divino” (como fazem os Maçons), pois isso significa ultrapassar o âmbito de
toda experiência possível, e estaremos “fazendo um uso indevido de uma
categoria do entendimento. Isso rompe com a metafísica tradicional e com a
possibilidade de sustentar a existência de Deus através da razão. O que cria o
Transcendental são as nossas imagens, sonhos e devaneios”. Kant separa o
pensamento racional dos campos especulativos pertencentes à emoção e ao
sentimento, e, assim, paramos de tentar entender o mundo “em si” e buscamos o como é representativo do mundo. Um exemplo
concreto dessa diferenciação é dado por Kant em seu “ENSAIO SOBRE ENFERMIDADES
DA MENTE”, onde analisa Jan Komar Nicki, o “Profeta das Cabras”, que vivia em
sua cidade vestido com pele de animais, descalço e com rebanhos de vacas,
ovelhas e cabras que precisavam ter sempre o mesmo número, e fazia profecias
sobre Deus e o Mundo. Esse é o modelo Transcendental Metafísico de Kant, onde o
Maravilhoso é apenas Extravagante. Isso torna impossível que qualquer pessoa ou
grupo de pessoas possam reivindicar a Verdade sobre nossa existência.
A impossibilidade
de conhecer a “Coisa em Si” pode parecer uma limitação muito dura -e é mesmo -, mas o que
ocorre é uma libertação individual, a possibilidade de encontrar parâmetros
subjetivos para a própria existência. Essa é a experiência que temos de Urano
na astrologia. Nenhum dogma, verdade, espiritualidade ou formação resiste à
necessidade de liberdade subjetiva e rompimento com aquilo que oprime a autoexpressão
quando se trata desse planeta, seja no mapa natal, seja em trânsitos ou
progressões. Uma constatação que faço há muitos anos é que pessoas que conseguiram
conquistar uma autoexpressão em suas vidas e buscam isso conscientemente (no
trabalho, nos relacionamentos, na espiritualidade, etc.), não vivenciam
rompimentos significativos com os movimentos uranianos, e sim maiores
oportunidades de expressão.
Kant
demonstra a impossibilidade de encontrar o Absoluto através do uso da Razão,
portanto não se trata mais de uma transcendência do “Além” do Mundo, mas a
transcendência do que não é nem mais nem menos do que a faceta sempre visível
de todas as Representações: “a Razão Humana... tem o singular destino... de ser
assediada por perguntas a que não pode desdenhar porque são apresentadas pela
própria natureza da razão, mas que tampouco pode responder, visto que superam toda
capacidade da razão humana”. A função da nossa Razão não é de encontrar o
conhecimento absoluto, mas permitir “atravessar os ritos de passagem que nos
dão acesso ao mundo das vivências”. Joseph Campbell irá trabalhar com essa premissa para analisar mitos. Podemos encontrar verdades parciais que nos
ajudam a viver, mas sempre estaremos lidando com representações do mundo, do
outro e de nós mesmos. A existência humana passa a ser algo mais complexa, pois
entendemos que “somos uma ‘Coisa em Si’ e também uma representação para nós
mesmos”. A Transcendência deixa de ser algo sublime para se transformar em um
ponto cego. É isso que Freud e a psicologia que nasce com ele vão chamar de
Inconsciente, confirmando a ideia de Kant de que “a ‘Coisa em Si’ é o "re-verso
de todas as nossas re-presentações”.
Essa dupla
natureza que Kant demonstra (uma fenomenológica, “célula do mundo sensível que
pode ser refletida pela Razão” e uma numinosa, chamada de “Nômeno” por Kant e
de “Numinosidade” por Jung, que é criada através da “Coisa em Si), cria a
possibilidade de exploração do universo interno do indivíduo a partir das
experiências vividas pelo próprio individuo, e é isso que Freud vai buscar nas
histéricas e Jung nos esquizofrênicos.
Apesar de
não poder ser conhecida através da razão, a “coisa em si” se manifesta quando
agimos no agora e experimentamos a nós mesmos de tal maneira que não nos
encontramos interligados em uma cadeia causal, mesmo que mais tarde possamos
encontrar uma necessidade ou causalidade para nossa ação. O exemplo de Kant:
levantar de uma cadeira “completamente livre e sem influxo determinante de
causas naturais” é um ato gerado pela “coisa em si”, enquanto uma ação gerada
por “necessidade” ou “causalidade”, como levantar-se para movimentar as pernas
ou chamar a atenção das pessoas na sala, são categorias do nosso “entendimento
representativo, e desse modo do mundo representativo, do mundo como ele
aparenta ser”. Olhando para
o Mundo não há como saber o que é um ato gerado pela “Coisa em Si” e o que é
fruto do nosso entendimento representativo. A Coisa em Si é algo que já é antes
que eu possa compreender ou explicar. Quem já teve a experiência de querer
fazer algo, mas a “Vida” (“Deus”, o “Destino”, etc.) tinha outros planos, sabe
que não conhecemos nem a Coisa em Si em nós mesmos. Urano trabalha com a
mudança em nossas representações, já que ele faz parte do nosso sistema solar,
mas, assim como os outros transaturninos, ele parece ter maior proximidade com
a Coisa em Si, pois tem também um aspecto numinoso que torna suas ações
irresistíveis e muitas vezes imprevisíveis.
Entendermos
a limitação de nossa racionalidade humana traz o incrível paradoxo de nos
libertar dessa mesma racionalidade. Essa é porta que permite a entrada de
Charles Darwin e sua “A Origem das Espécies”, publicado em 1859, onde ele demonstra
que não somos muito mais do que macacos mais espertinhos. Mas isso já é assunto
para Netuno, que foi avistado graças aos movimentos estranhos de Urano...
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