sábado, 27 de outubro de 2007

Mitos para Escorpião


Todos os heróis precisam passar uma temporada no Reino dos Mortos para conseguir alcançar sua divindade. Psiquê e Hércules, Orfeu e Jesus Cristo, Odin e Merlin passaram por essa iniciação. Dionísio virou sopa de Gigantes antes de renascer da coxa de Zeus e Osíris foi estraçalhado por seus inimigos para ser reconstruído por sua esposa Ísis. Core tem que ser raptada pelo Senhor dos Mortos para se tornar a Rainha Perséfone. Desenhos rupestres em cavernas, resíduos de práticas iniciáticas de civilizações antigas, como os Mistérios de Elêusis, e práticas atuais em sociedades indígenas, nos falam da importância desse sacrifico para se alcançar uma outra dimensão da existência. Há um ensaio de Schopenhauer onde o filósofo se pergunta o que leva alguém a sacrificar a própria vida por outra pessoa, anulando a primeira lei da natureza, que é a autopreservação. Sua resposta é que tal crise psicológica representa a abertura para a consciência metafísica de que você e o outro são um e que nossa verdadeira realidade consiste na nossa identidade e unidade com a vida total.

Um mito que fala muito bem do processo de Escorpião e sua descida aos reinos mais profundos, é o de Inana e Ereshkigal, deusas irmãs dos Sumérios. Inana era a Rainha do Céu e da Terra, que acolhia todas as criaturas em seu manto brilhante e possuía um trono feito de estrelas. Sua irmã, Ereshkigal, reina sobre os Sete Infernos do Submundo e é casada com Gugalana, o enorme e violento touro celeste que foi parar no submundo como castigo pelas atrocidades que havia cometido. Quando o marido de Ereshkigal morre, Inana decide visitar a irmã no mundo inferior para acompanhar o funeral, mas a deusa infernal, em vez de receber a irmã com as honras que essa merecia, a sujeita ao mesmo tratamento que todas as almas recebiam e a faz passar por sete portais, sendo que a cada portal a Rainha do Céu e da Terra tem que se desfazer de uma peça de roupa ou ornamento e ir se abaixando cada vez mais. Inana chega em frente de sua irmã completamente nua e de joelhos. Não contente com isso, Ereshkigal ainda a mata e dependura num gancho de açougue para apodrecer no mundo inferior. Quando Inana não retorna ao mundo dos vivos depois de 3 dias, deuses e homens se apavoram por ficar sem sua rainha, mas ninguém tem coragem de ir atrás dela e resgata-la. É então que dois seres andróginos chamados “os pranteadores”, que serviam a Inana, resolvem penetrar no grande espaço abaixo sem serem notados e se aproximam de Ereskigal num momento em que ela está em grande sofrimento, não só pela morte do marido, mas também por estar grávida e ter que enfrentar um parto difícil - algo morreu, mas algo está nascendo. Os pranteadores foram ensinados por Inana a afirmar a força da vida, principalmente quando esta se manifestar como miséria, escuridão e sofrimento. Quando se aproximam de Ereshkigal, se comiseram com sua condição e lhe dão a chance de lamentar-se e refletir sua desgraça e dor sem julgamentos ou culpas:

"Ai, está doendo dentro de mim!", diz Ereskigal.
Eles respondem:
"Ai, Tu que gemes, nossa Rainha. Ai! Está doendo dentro de ti!
Quando ela diz:
"Ai, está doendo fora de mim."
"Ai! tu que gemes, nossa Rainha. Ai! Está doendo fora de ti", eles lamentam.

Assim, a dor vai se transformando em oração até que Ereshkigal consiga completar seu parto e sair da dor. Seu desejo de destruição se transforma em gratidão, e ela oferece aos pranteadores um desejo. Eles pedem que Inana volte à vida e ao mundo superior, o que lhes é concedido desde que alguém viesse substituí-la, já que não há como burlar a contabilidade de almas no reino inferior. Chegando ao seu Reino, Inana vê seu trono usurpado por Damuzzi, seu marido, e num acesso de raiva manda que os demônios de sua irmã o levem para pagar a dívida. Os Reinos Superior e Inferior encontram um novo equilíbrio. Não só Erishkigal ganha luz em seu reino, através da compaixão que recebe dos pranteadores, mas Inana ganha poder e força com sua morte e renascimento.

Rosane Volpatto, pesquisadora de mitos femininos, tem um ótimo poema que resume esse processo:

Fui até lá de livre vontade.
Fui até lá com meu vestido mais lindo, minhas jóias mais preciosas e minha coroa de Rainha do Céu.
No Inferno, diante de cada um dos sete portões, fui desnuda sete vezes de tudo o que pensava ser, até que fiquei nua daquilo que de fato sou.
Então eu a vi:
Ela era enorme e escura e peluda e cheirava mal.
Tinha cabeça de leoa, patas de leoa e devorava tudo que estivesse à sua frente.
Ereshkigal, minha irmã
Ela é tudo o que eu não sou
Tudo o que eu escondi
Tudo o que eu enterrei
Ela é o que eu neguei
Ereshkigal, minha irmã,
Ereshkigal, minha sombra,
Ereshkigal, meu eu.

Escorpião é um signo com uma força interior que pode ser surpreendente até para a própria pessoa. Sendo regido por Plutão, um dos planetas que vêm depois de Saturno e da estruturação do ego, possui como “guia” uma energia que o leva para além da própria existência, pois tem uma conexão com os processos coletivos da Humanidade. Cada vez que um Escorpião tem a coragem de ir aos reinos inferiores para resgatar suas sombras, e faz isso armado de toda a sua capacidade amorosa e compaixão, algo novo, mais verdadeiro e mais precioso, pode vir à consciência. Nesse processo temos que perder muitos dos ornamentos que mantínhamos para aparentar uma posição ou força. Em troca conquistamos a verdadeira inocência, não mais aquela vinda da ignorância e da inexperiência, mas aquela que está ligada à origem da palavra, que quer dizer “aquele que cura o dano causado a si mesmo”. Como diz Clarissa Pinkola Estes, em Mulheres que Correm com Lobos: “Ser inocente significa ser capaz de ver com nitidez qual é o problema e corrigi-lo. (...) Ela é considerada não só uma atitude de evitar o dano aos outros ou ao próprio Self, mas também a capacidade de curar e recuperar a si mesmo (e aos outros). Pense nisso. Imagine as vantagens para todos os ciclos do amor.”


Filmes para entender Escorpião:

Constantine – (Idem) – 2005 – EUA - Direção: Francis Lawrence.
Sherek – (Idem) – 2001 – EUA - Dream Work – Paramount Pictures
O Iluminado – The Shining – 1980 – Reino Unido – Direção: Stanley Kubrick
Cheiro do Ralo – 2007 – Brasil – Direção: Heitor Dhalia

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