“Depois de ensaboar, esfregar e enxaguar o cabelo, Auri mergulhou na interminável água negra de Tinidos, para se enxaguar pela última vez. Sob a superfície, algo roçou nela. Algo escorregadio e pesado encostou seu peso imóvel na perna dela. O que não a incomodou. Fosse o que fosse, estava em seu lugar, e ela também. As coisas eram exatamente como deviam ser.”
Esse post é para recomendar uma leitura enquanto o
Sol ainda transita por Virgem: A Música
do Silêncio (The Slow Regard of
Silent Things), de Patrick Rothfuss, editado no Brasil em 2014 pela Editora
Arqueiro. É um livro iniciático para o eixo Virgem-Peixes e, portanto, desvenda
segredos de todas as suas combinações: Mercúrio na casa 12 e Netuno na casa 6,
Virgem de casa 12 e Peixes de casa 6, Netuno em Virgem, Mercúrio em Peixes,
etc.
O autor, Patrick Rothfuss, tem uma trilogia ainda não
concluída chamada A Crônica do Matador
do Rei (Ed. Sextante), que fala de um mago alquimista e da sua formação. Eu
gostei muito dos dois primeiros livros já publicados, não só por que a história
é muito boa, muito bem escrita e muito bem traduzida, mas também porque
Ruthfuss realmente tem estudos de magia e alquimia e coloca esse conhecimento a
serviço da trama, fazendo com que se possa fazer uma segunda leitura mais
profunda enquanto se acompanha as peripécias do herói de caráter pra lá de
duvidoso.
Na escola de magia, onde o protagonista de Rothfuss vai
parar para começar sua formação, ele encontra Auri, que vive nos subterrâneos
da escola sem que ninguém perceba. Apenas o professor que ensina a descobrir o
verdadeiro nome das coisas sabe dela, que um dia foi sua aluna mais brilhante e
que ao se desenvolver teve um rompimento com o mundo externo e passou a viver
nos subterrâneos, em vários sentidos. A Música
do Silêncio é uma semana dessa encantadora personagem secundária da
história do Matador do Rei em seu universo subterrâneo.
Não é um livro de entrada fácil ou de saída confortável. Eu
me senti em muitos momentos invadindo a intimidade de um ser absolutamente delicado, com mistérios
que eu nunca poderei entender inteiramente. Essa foi uma das dicas para mim de que se
trata desse eixo de transformação Peixes-Virgem. Mas com o desenrolar da
história vai se entendendo muitos dos sentidos dado ao mundo e a si nesse eixo.
Uma das características brilhantes desses signos é a
compreensão mais profunda a respeito da humildade, e a busca por aperfeiçoar
essa virtude. Claro que isso pode ser feito a serviço de uma ética distorcida,
como no caso do Deputado Eduardo Cunha que serve à forças obscuras, ou a
serviço do entendimento de uma harmonia e um sentido transcendente, que sabe
ser a morte o final inevitável de todos, como no caso de Jorge Luís Borges: “Auri
se sentia pequena. Não era a pequenez pela qual se esforçava todos os dias. Não
a pequenez de uma árvore entre as árvores. De uma sombra no subterrâneo. E
também não era a pequenez do corpo. Auri sabia não haver muito dela. (...) Mas
não. Com o cabelo puxado para trás, e ainda por cima molhados, ela se sentia...
menor. Comprida. Embaciada. Mais frágil. Lograda. Ilusória. Aflita. Seria puro
desprazer sem a tira perfeita de linho. Não fosse isso, ela não se sentiria
apenas como um pavio enrolado, mas completamente desfeita, derretida. Valia a
pena fazer as coisas direito. ” (pg. 18/19)
Essa é uma boa chave que Auri dá ao longo do livro sobre a
tal “perfeição” virginiana, tão diferente da perfeição libriana, pois não visa
uma harmonia estética, mas um “encontrar o lugar certo”, um “fazer as coisas
direito”: “Ainda assim, antes de sair, ajudou cada coisa a encontrar
seu lugar apropriado. O cinto ficou na mesa de centro, é claro. A fivela
deslocou-se e foi descansar ao lado do prato de resina. O osso aninhou-se numa
proximidade quase indecente das drupas de azevinho. Já a engrenagem era um
problema. Auri colocou-a na estante de livros, depois a mudou para a mesa de
canto. Ela ficou encostada na parede, com a lacuna do dente perdido apontando
para cima. Auri franziu a testa. Não era exatamente o lugar apropriado. Pegou a
chave e a segurou diante da engrenagem. Preto e bronze. Ambas feitas para
girar. Somadas tinha doze dentes.... Balançou a cabeça e deu um suspiro.
Recolocou a chave no bolso e deixou a grande engrenagem na estante. Não era o
lugar dela, mas era o melhor que Auri podia fazer por ora. ” (pg.28)
Apesar da fama de caótico de Peixes e de organizada de
Virgem, esses dois signos buscam uma ordem de sentido que vai além das camisas
pretas ao lado das brancas. Na verdade, faz muito mais sentido colocar a camisa
do pai ao lado da camisa do avô, mesmo que as cores não combinem. Por isso a
busca de Virgem por informação é tão distinta da busca geminiana, pois o
Mercúrio virginiano está interessado em informações que possam ajudá-lo a
descobrir o lugar “certo” das coisas. É por isso que virginianos e piscianos
costumam se lembrar de histórias contadas a muito tempo atrás, mesmo que não
lembrem do nome de nenhum dos personagens.
Aliás, uma das grandes questões da magia é exatamente
descobrir o verdadeiro nome das coisas, e nossos nomes mudam conforme nossas
vivencias, nossos lugares, nossas idades e nossas buscas, e descobrir esses
nomes é a uma das vocações mutáveis desses signos. “Alguns locais tinham nomes.
Alguns os mudavam, ou eram tímidos a respeito deles. Havia os que não tinham
nome e isso era sempre triste. Uma coisa era ser reservado. Mas não ter nome?
Que horror! Que solidão! ” (pg. 33) Esse horror e solidão é que fazem virginianos correrem
atrás de informações a respeito da vida e de seus mistérios. Podem
fazer a experiência e vocês verificarão a quantidade de virginianos psicólogos,
astrólogos, tarólogos, e participantes de rodas de cura dos mais diversos
segmentos procurando o nome das coisas. Por isso é tão difícil saber mais que
um virginiano a respeito de algo a que ele se dedique, pois essa busca não é
apenas por informação e cultura geral, como para o eixo Gêmeos-Sagitário, mas
algo que impede a tristeza de não se ter nome tomar conta da vida.
Essa busca pelo nome das coisas e por seu lugar correto, que
faz com que Virgem consiga circular por esse mundo subterrâneo pisciano da
maneira certa, é que faz esse ser parecer tão casto e comedido em sua aparência
e comportamento, tão cheio de rituais sem sentido para quem olha de fora. Essa
também é a fonte que alimenta a hiper crítica destrutiva de Virgem, que ela
pode jogar para fora de várias maneiras ruins e tortas, mas que é mortal quando volta para si
mesma, principalmente quando isso implica em abrir mão do próprio prazer. Vou
destacar aqui uma boa passagem de como essa lógica funciona no relato de Auri: “Nesse instante, sua respiração ficou presa no peito. No
fundo da gaveta, meticulosamente dobrados, estavam vários lençóis perfeitos,
alvos e macios. Auri estendeu a mão para tocar um deles e se admirou ao ver
como sua trama era fechada. Tão fina que seus dedos não conseguiam sentir os
fios de linha. Era fresca e gostosa de tocar, como um amante recém-chegado do
frio que viesse beijá-la. Auri deslizou a mão pela superfície. Que encanto
seria dormir num lençol assim! Deitar sobre ele e sentir aquela doçura em toda
sua pele nua! Ela estremeceu e fechou os dedos em torno das bordas dobradas do
lençol. Mal percebendo o que fazia, Auri o tirou de seu lugar certo e o levou
ao peito. Roçou os lábios na maciez do tecido. Havia outros lençóis embaixo
desse. Um tesouro. Sem dúvida eram suficientes para um lugar como Carreta. Além
disso, ela havia arrumado tantas coisas! Com certeza...
Fitou o lençol por um longo momento. E, quando seus olhos
eram só suavidade e desejo, sua boca tornou-se firme e furiosa. Não. Não era
esse o jeito das coisas. Ela não se deixava enganar. Sabia perfeitamente qual
era o lugar daquele lençol. Fechou os olhos e o repôs na gaveta, sentindo a
vergonha arder no peito. Às vezes ela era uma coisa cobiçosa. Querendo algo
para si. Distorcendo a forma apropriada do mundo inteiro. Querendo mandar em
tudo com o peso do seu desejo. ” (pg. 36/37)
Um herói de Touro ficaria com os lençóis sem pensar duas
vezes, um de Capricórnio pensará duas vezes se isso representar algo importante
em seus planos e não sentirá nada por fazer o que acha que tem que fazer. Nossa heroína Virgem olhará para dentro de si, e se houver
algo fora do lugar “correto”, ela se sacrificará em nome disso, apesar da fama
pisciana de sacrifício. O sacrifício será o mesmo nesse eixo. O resultado disso
pode ser um olhar muito cruel para o mundo, já que as pessoas não vivem dentro
dos mesmos padrões de correção. Auri
pode fazer isso por que é um personagem e vive dentro de um mundo subterrâneo.
A vida com outros seres humanos é bem diferente.
Auri traz um caminhar virginiano por estares piscianos, na
solidão e autonomia que simbolizam esses signos: “Auri ainda sorria quando se
deitou em sua caminha perfeita. E, sim, a cama estava fria, e solitária também.
Mas isso não tinha jeito. Auri sabia melhor que ninguém que valia a pena fazer
as coisas direito. ” Esse é tanto o preço que se paga quanto a recompensa que
se conquista por aqui.
Enfim, poderia ficar citando e destrinchando o livro todo,
mas espero ter despertado a curiosidade de vocês a respeito de Auri e também
desses seres mutáveis de modo a animá-los a fazer a leitura do livro e dos
signos. Quem puder ler em inglês eu recomendo, pois Patrick Rothfuss faz vários
jogos de palavras poéticos que valem a pena percorrer. Mas a tradução está boa
também, não se preocupem. Talvez ajude ler primeiro as Crônicas do Matador do Rei, mas não necessariamente.
Uma última citação para falar algo que me ocorreu nessa
leitura. Acho que no fundo o que Virgem quer é deixar de ser uma pessoa para se
tornar um lugar como o Doze: “O Doze era um dos raros lugares mutáveis dos
Subterrâneos. Era sábio o bastante para se conhecer, corajoso o bastante para
ser ele mesmo e impetuoso o bastante para se modificar, ainda que, de algum
modo, se mantivesse inteiramente correto. Era quase único nesse aspecto e,
embora nem sempre fosse seguro ou bondoso, Auri não podia deixar de sentir
afeição por ele. ” (pg. 15)
(PS. Essa vai para o Álvaro, que busca seu lugar através
desse eixo e me mandou um lindo Zodíaco oriental que tem
um Mercúrio de várias dimensões e começa por Aquário.)
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