quinta-feira, 30 de abril de 2015

Plutão Retrógrado em Capricórnio


“Inventar uma vida é a tarefa mais fascinante de um humano, exatamente pelo tanto de improvável e de absurdo que contem. É, como sabemos, nossa primeira ficção. E a empreendemos nus e com tão pouco.”

Eliane Brum


Plutão estará em movimento retrógrado até novembro, e isso significa uma ótima oportunidade para se pensar como as vivências externas e coletivas têm ativado processos e construções - ou desconstruções – internas. 

Com essa quadratura entre Urano em Aries e Plutão em Capricórnio que andamos vivendo nos últimos anos, uma pausa para se entender no meio de tudo isso é sempre bem vinda. Quando o mais lento dos planetas resolve dar uma olhada para traz saindo da sua expressão normal de tempo, podemos ver nossos movimentos dentro de um quadro mais amplo. A ideia é poder estar eliminando o que ainda pesa, limpando o que ainda fede e perceber as mudanças que já se operaram, para assim conseguir avaliar nosso processo de auto regeneração e programar, com ajuda do inconsciente, os próximos passos. Coisa pra gente grande, eu sei...

Essa briga entre mocinhos e bandidos que Urano em Aries vem instigando (capitalistas reacionários x comunistas corruptos é das mais óbvias) tem feito com que a sombra da estrutura capricorniana venha com mais força e a tendência a nos tornarmos fundamentalistas em busca do Poder fica evidente a cada passo, a cada disputa eleitoral, a cada PEC (proposta de emenda à constituição), a cada carteirada de juiz, a cada carro que estaciona sobre ciclovia ou em vaga de cadeirante.

Quando se percebe que olhar as necessidades de transformação internas trazem melhores frutos do que as tentativas de mudar o mundo externo, buscar as muitas coisas que ainda precisam ser feitas em si pode ser bem animado e uma ótima alternativa à depressão. Assim podemos aproveitar melhor também a força sugerida no 16º de Capricórnio pelos símbolos sabeus, onde Plutão está retroagindo: “quadras escolares repletas de jovens em roupas de ginática”. Pelo jeito aqui temos energia suficiente para reavivar vulcões e abalar o Himalaia...

O primeiro passo para isso é aceitar que não existem mocinhos e bandidos, que os capitalistas reacionários são corruptos e os comunistas corruptos são reacionários. E nós somos as duas coisas. Também. Assim como ser patriota é respeitar o povo que elegeu o partido comunista corrupto para o Executivo e os partidos capitalistas reacionários para o Legislativo. Também.  O que quero dizer é que não dá para eliminar o Inimigo, mas se você parar de xingar o Outro e olhá-lo nos olhos, ele pode ajudar você a se transformar no seu melhor potencial. E isso apenas seu Inimigo mais visceral poderá fazer. Com ajuda de Plutão então... Bom, com Plutão você não terá muitas outras opções...

Toda vez que o Outro está 100% errado e você está 100% certo, pode ter certeza de estar lidando com algum tipo de projeção. Isso quer dizer que você pegou uma parte sua que é mais aceita em algum nível (familiar, religioso, social, amoroso, etc.) e achou alguém ou alguma coisa para usar de cabide e pendurar aquilo que em você é oposto à imagem bacana que você tem de você mesmo. Winnicott fala da grande aventura que é a construção da nossa individualidade (individuo = individuus = indivisível).  Nascemos absolutamente dependentes de um adulto que cuide de nossas necessidades e que integre as nossas variadas experiências e percepções em um alguém coerente que poderemos chamar de eu. Uma das estratégias que usamos nessa construção é transformar as contradições e oposições que encontramos em um mesmo lugar em dois lugares diferentes. Assim imaginamos que existe uma mãe boa, que nos alimenta, nos troca, interage conosco e nos dá tudo que queremos e precisamos, e uma mãe má, que não nos alimenta quando temos fome e está fazendo outra coisa que não é cuidar de nós o tempo todo e por isso estamos em sofrimento. A ideia de que a mãe má e a boa são a mesma pessoa é avassaladora para esse ser em formação. Acho que seria mais ou menos como o Batman descobrir que o Coringa na verdade é seu pai e a Mulher Gato sua mãe, sendo eles quem pagam todas as contas do Bruce Wayne e da Bat aventura ao mesmo tempo em que o atormentam nas noites de Gotham City. Não faz sentido nem para o Kubrick. Então nós pequeninos amamos nossa mãe boa e combatemos a mãe má, até conseguirmos nos desenvolver o suficiente para encarar aquilo que foi chamado de Princípio da Realidade, ou seja, que essa história de mocinhos e bandidos, Vingadores vs Ultron é só uma distração de 2 horas em 3D no cinema perto de sua casa.

Os males da sociedade são nossos próprios males, mesmo que coloquemos a culpa nos políticos, no povo ou na mãe (sim, o secretário de segurança pública do RS disse que a culpa do aumento da criminalidade é das mulheres que trabalham fora). Com Plutão retrógrado em Capricórnio é possível entendermos a responsabilidade que temos em nossa construção de identidade, desde que consigamos incorporar nessa construção também os elementos destrutivos e distorcidos. Isso não é fácil, pois estamos acostumados a pensar apenas a partir de sistemas lineares, simples, e onde ainda não amadurecemos o suficiente vamos trabalhar com crenças generalizadoras e sentir a frustração como uma ameaça. Como diz o filósofo David Weinberger no livro To Big for Know: “Usar universais é uma tática simplificadora dentro de nossa estratégia mais abrangente para lidar com um mundo que é grande demais para ser conhecido, reduzindo o conhecimento àquilo que nosso cérebro e nossa tecnologia nos permitem lidar.” Acontece que atualmente e como adultos temos que trabalhar com sistemas complexos, onde o foco não está mais no sujeito ou no objeto, mas na relação, na conexão entre eles. Nem todas as conexões podem ser ótimas, ou seja, podem satisfazer às necessidades ou desejos ideais simultaneamente de modo a nos manter em equilíbrio e com um gasto mínimo de energia. Sistemas complexos só podem ser explicados e compreendidos através da desordem e da frustração.  

No símbolo de Plutão temos o divino isolado da matéria, e isso significa que esse planeta (planetoide, bi-planeta, ugabuga, ou seja lá como os astrônomos queiram chama-lo) traz o desolamento de não entendermos o significado maior de algo que parece muito ruim e muito frustrante, principalmente se quisermos buscar um sentido moral para o que acontece. A grande tentação que Plutão traz é acharmos que somos tão bacanas que se tivéssemos poder faríamos melhor, diferente, e traríamos a paz ao mundo, ou seja, faríamos o sistema entrar em equilíbrio. Principalmente se pudéssemos eliminar algumas dúzias de pessoas do mal. E segundo uma pesquisa que li falando de alguns assuntos polêmicos, eu eliminaria 93% da população. Ops... Pois então: Plutão foi avistado pela primeira vez em Câncer (signo oposto a Capricórnio) na mesma época em que ascendia o Nazismo na Alemanha e ele nos mostra sem anestesia que não adianta sermos bacaninhas na tentativa de negociar uma vida sem problemas com o Destino. As Moiras não aceitam barganhas e cobram caro esse tipo de ignorância.

É preciso abrir mão da ignorância que justificamos chamando de inocência para poder caminhar com Plutão até esses labirintos internos mais sombrios. Precisamos querer ver a verdade. Quando olhamos a nós mesmos com os olhos de Plutão podemos parecer bem mesquinhos e virulentos. Mas se você não olhar para isso com seriedade, essas mesquinharias e virulências vão contaminar o ambiente sem que você perceba, e aí você acaba nesse lugar impotente da vítima sem entender como. Você só estava brincando, né? Pois esse momento de Plutão retrógrado serve para pararmos de tentar esconder esse lado mais sombrio, nossas corrupções e desvios de verbas internos. Para isso teremos ajuda das nossas conexões e relacionamentos que denunciarão isso. Os falsos estados de equilíbrios, aqueles que se mantêm ao custo de não se olhar para as coisas como são ou de se fingir não estar em frustração não têm mais energia para manter-se, e então se rompem, muitas vezes de maneiras bem feias. Ou aparentemente feias, pois têm cara de caos, de desordem. Mas tenha certeza que só a partir disso algo novo vai poder ser criado. Vamos lá: respire e solte... Nós temos uma incrível necessidade de auto superação que aparece quando saímos desse lugar de vítima, e isso é tremendamente importante para podermos construir uma melhor civilização. Essa aproximação que podemos fazer nesse momento entre a nossa vida interior e a exterior são bem importantes. Muitas vezes é através da consciência que adquirimos nesses colapsos que podemos chegar naquele olhar no espelho que diz: “eu te odeio”. Se você conseguir sustentar esse olhar sem sair correndo ou sucumbir a ele, você então poderá passar para a fase criativa, que vem depois que conseguirmos perguntar ao espelho: “por quê?”. Aqui você vai conseguir caminhar por muitas das questões que realmente trazem sofrimento para você a partir de você mesmo. Não tenho como falar ou mostrar a mudança que pode causar na sua vida o encontro das justificativas que o sabotador interno cria para te deixar bem infeliz e assim se manter no controle.

O melhor lugar para se encontrar refúgio nesses momentos de colapso é sem dúvida no corpo físico. Como diz o povo que faz trabalhos corporais, nosso corpo somos nós no sentido mais básico, pois é nossa única realidade perceptível, e é muito importante que não o percebamos como oposto à nossa inteligência, espírito, sentimento, alma ou seja lá com que outra parte escolhemos colocar nossa identidade consciente “bacana”. O corpo sempre nos inclui e dá abrigo e por isso “ter consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser inteiro... Pois corpo e espírito, psíquico e físico, até força e fraqueza, representam não a dualidade do ser, mas sua unidade” (Thérèse Bertherat e Carol Bernstein; O Corpo Tem Suas Razões). Que fique bem claro que aqui não estou falando sobre a obsessão de se moldar o corpo segundo um padrão estético de massa aprisionante e sim na consciência de que você e seu corpo, independente da forma que tenha, é você. Citando novamente Bertherat e Bernstein: “Saúde, bem estar, segurança, prazeres, deixamos tudo a cargo dos médicos, patrões, maridos, esposas, amantes, filhos. Confiamos a responsabilidade de nossa vida, de nosso corpo, aos outros, por vezes àqueles que não desejam essa responsabilidade e se sentem esmagados por ela; quase sempre àqueles que pertencem a Instituições cuja primeira finalidade é nos tranquilizar e, portanto, de nos reprimir”. Então, se você se sente em colapso, se seus relacionamento estão gerando frustrações, e você começa a entender que existem mais coisas em você do que você pensava – ou gostaria – respire, solte e vá para seu corpo, onde todas as suas contradições, emoções, crenças, valores, vivências e hábitos tem um lugar e podem mostrar o sistema complexo que você é. Se você escolher conhecer seu corpo em vez de combatê-lo, se as frustrações por ser um ser limitado puderem ser substituído por uma real curiosidade a respeito de si, se você se perguntar o que significa essa barriga, ou essa dor no joelho, ou essa vista cansada em vez de ficar tentando “corrigir” essas coisas, você vai ganhar em primeiro lugar autonomia, pois não precisa mais de algo externo para te dizer como você deve ser ou o que fazer consigo, já que seu corpo vai poder te falar isso. Mas principalmente você vai poder passar a usufruir o estar aqui, nesse momento, nesse corpo, que é só seu e de mais ninguém e que, mesmo com todas as contradições, traumas, dores e dificuldades, ainda dança, canta, sente e dá prazer. Esse livro, O Corpo Tem Suas Razões, é mesmo muito bom para pensar sobre isso: “quando renunciamos à autonomia, abdicamos de nossa soberania individual. Passamos a pertencer aos poderes, aos seres que nos recuperaram. Se reivindicamos tanto a liberdade é porque nos sentimos escravos; e os mais lúcidos reconhecem ser escravos-cúmplices. Mas como poderia ser de outro jeito, se não chegamos a ser donos nem de nossa primeira casa, da casa que é o corpo?”

Tenho percebido ao longo do tempo que esse voltar-se para conhecer e explorar o corpo é a melhor maneira de se tratar as crises ligadas aos transaturninos em geral e Plutão em especial. Acho que a principal razão disso é por que o corpo não mente, por mais enxertos e maquiagens que usemos. Mesmo se pensarmos nos transexuais, que nascem em um corpo de gênero oposto ao que são internamente, esse corpo também abriga quem essa pessoa é, e pode até se deixar moldar. A relação entre esse corpo e essa pessoa também irá criar uma identidade única. E se a relação não for amorosa, dificilmente poderá ter um caminho feliz. Também porque o corpo é o melhor professor para se trabalhar frustração. Diferente do relacionamento com uma outra pessoa, não podemos simplesmente ir embora quando nos frustramos ou nos assustamos conosco mesmos. Podemos deixar nossos corpos – de inúmeras maneiras – mas isso não irá eliminar ou resolver a questão, e geralmente cria mais problemas, que vão nos debilitando mais e mais até o corpo se desligar de vez. Plutão em especial costuma estar ligado a doenças bem debilitantes construídas com a negatividade interna não consciente. Cuidar do corpo nesse contexto não é acreditar na vida eterna do nosso físico ou na eterna juventude vendida como ideal, mas é conseguir estar bem consigo através do corpo. Isso vai integrá-lo em um todo coerente muito mais profundamente do que qualquer coisa externa que se encontre.

Como dizia Eduardo Galeano, de mui saudosa lembrança: “A Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Quem Tem Medo de Mercúrio Retrógrado?

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc. 
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.”
Manoel de Barros


Continuo ouvindo histórias de terror quando se fala sobre Mercúrio Retrógrado, por isso vamos tentar olhar para isso de maneira um pouco mais ampla.

Duas coisas me levaram a estar aqui, buscando esse entendimento com vocês: a fala de um astrólogo bem bacana – ou seja, que pensa astrologia parecido comigo, hehe - chamado Tom Kaypacha Lesher (www.newparadigmastrology.com), que a amiga querida Tatiana Schreiner me apresentou, e umas gravuras Etruscas que caíram na minha mão e me encantaram, como essa de abertura da postagem. Etruscos era como os gregos denominavam o povo que habitava em cidades-estado a região que hoje seria a Toscana, entre os rios Arno e Tigre na Itália, em torno de 1200 e 700 a.C.

A maior parte das informações que recebemos dos povos da Antiguidade (período que vai da descoberta da escrita, aproximadamente 4000 a.C, até a queda do Império Romano, cerca de 476 d.C) vieram até nós através dos Gregos, que se transformaram nos relatores oficiais daquilo que “valia a pena ser conhecido”. Por isso sabemos bastante sobre os Egípcios e tão pouco sobre a Gália e a cultura Celta, por exemplo, pois os gregos viviam trocando figurinhas com os Egípcios, mas achavam que os Celtas eram uns bárbaros ignorantes.  Mesmo a astrologia, que tem referencias pré-históricas, chegou até nós através dos filtros gregos elaborados por Ptolomeu (90-167) – que era egípcio de nascimento e vivia  em Alexandria, também no Egito – através do seu incrível Tetrabiblos. Uma das dificuldades que isso nos traz é que muitas coisas que os gregos desqualificavam, são importantes hoje em dia para se compreender o mundo e as pessoas. Sem desonrar toda a importância do pensamento grego para a construção do mundo que conhecemos, uma das dificuldades mais problemáticas que herdamos da cultura greco-romana que nos constitui - em minha opinião - é uma incrível misoginia (do grego miseó = ódio, gyné = mulher). Quando se estuda mitologia greco-romana nos deparamos constantemente com o tema do estupro “necessário” para que mulheres se entreguem a homens e filhos possam ser gerados; as deusas mais louvadas são as que não exercem sua sexualidade – daí a maneira como a castidade feminina foi assimilada pelos cristãos -, além da substituição de elementos femininos, yin, como a força das Águas ou da Morte, por deuses masculinos, mesmo que as práticas cotidianas e iniciáticas ligadas a esses temas sejam exercidas por mulheres. Afrodite/Vênus parece ser a única que conseguiu conservar um pouco da força original, mesmo tendo sido rapidamente casada para mantê-la dentro de uma estrutura social aceitável. É sempre bom nos lembramos de que ela é fruto dos genitais de Urano que fertilizaram o Oceano (ou já podemos dizer a Oceano?). Essa é a razão pela qual eu utilizo a mitologia de outros povos para entender e explicar alguns elementos astrológicos e acredito que isso tem ajudado a ampliar minha compreensão e também a de meus alunos. Muitas vezes é através da leitura de mitos bem distantes dos Greco-romanos que aparece aquela luzinha de compreensão para meu Mercúrio. Então, e Mercúrio retrógrado com tudo isso?

Hermes-Mercúrio é o Macunaíma (o herói sem nenhum caráter de Mario de Andrade, que se você ainda não conhece vai adorar conhecer) da mitologia grego-romana. Já escrevi sobre o mito e as aventuras mercurianas, então só vou recordar aqui que Mercúrio é um deus amoral sem ser imoral, que ajuda e atrapalha heróis com a mesma desenvoltura, assim como exerce funções femininas e masculinas com o mesmo charme. Da união desse deus dúbio com a poderosa Afrodite-Vênus nasce Hermafrodito, o herói que não precisa definir seu gênero, pois contem os dois. Nas imagens dos Alquimistas Mercúrio algumas vezes aparece vestido de mulher e se casando com Marte-Ares (Enxofre), como nessa aqui de G. van Vreeswyk, alquimista holandês do século 17:



Podemos entender hoje em dia essas características mercurianas que simbolizam o pensamento humano de maneira muito mais científica, através das pesquisas feitas com o nosso cérebro, que mostram como temos realmente dois tipos de raciocínio, um baseado no lado esquerdo e outro no lado direito desse órgão, que funcionam simultaneamente. O lado esquerdo é caracterizado pelo pensamento abstrato, que utiliza uma lógica de causa e efeito, que olha as partes de algo e tenta juntá-las de uma maneira que faça sentido racional em uma esfera de tempo, e assim aprendemos e construímos a comunicação verbal e nosso aprendizado linguístico, a compreensão de regras e estruturas, etc. O hemisfério direito busca a compreensão do todo trabalhando com várias informações ao mesmo tempo e é por onde aprendemos a linguagem não verbal e construímos uma compreensão espacial/corporal. O bom funcionamento do nosso cérebro depende da boa comunicação entre os dois hemisférios, assim como o bom funcionamento da nossa sociedade e da nossa pessoa depende da boa comunicação entre homens e mulheres, entre yang e yin, masculino e feminino. Há quem diga que um lado é mais desenvolvido em homens e o outro mais em mulheres, mas hoje sabemos que nosso cérebro é treinado pela formação que recebemos, então na época que meninos ganhavam bolas e meninas bonecas tínhamos um lado mais treinado em homens e outro lado em mulheres. A carência de um lado significa dificuldades para o outro lado e comunicação exagerada entre os dois lados cria sobrecarga no corpo caloso, o feixe de nervos que liga um hemisfério ao outro, gerando convulsões tipo epiléticas.  Já vi Amor sendo definido dessa maneira: respeito entre duas partes que colaboram com seu melhor... Enfim, especula-se que nosso cérebro processa em torno de 400 bilhões de bits de informação por segundo, sendo que aproveitamos cerca de 2 mil para nossa consciência cotidiana do mundo. Apesar de não se conseguir ainda a confirmação exata desses números, parece que a proporção entre quantidade de informação inconsciente e consciente está correta. Por isso cada vez se tem melhores resultados ao se trabalhar com as ideias de sistemas complexos, fenômenos emergentes, campos mórficos e morfogenéticos, onde observamos e usamos os resultados a partir de processos muito difíceis de captar conscientemente, individualmente.

Pois então. A cada quatro meses mais ou menos Mercúrio parece se movimentar para traz no céu durante uns 20 dias, e chamamos isso de movimento retrógrado. Já falei sobre isso em termos práticos em outra postagem.



No cotidiano nossa mente está muito mais consciente das nossas atividades externas, e aí fazemos a lista de supermercado, xingamos o apressadinho que nos deu uma cortada no trânsito, conferimos o extrato do banco e lemos um texto técnico para o trabalho enquanto planejamos a viagem de férias, as contas a serem pagas, quando vai entrar o dinheiro que vou receber por aquele trabalho, em quantas prestações eu poderia comprar aquela moto, as dúvidas a respeito daquela resposta do chefe ser um elogio ou uma crítica, quando será que vou encontrar  novamente aquele homem interessante que conversei na padaria e onde foi parar o boné preferido do filho.  Os pensamentos são fenômenos emergentes, como qualquer sistema complexo, e Mercúrio, com sua capacidade de caminhar por todos os reinos e encontrar caminhos e atalhos através da Matéria, da Alma e do Espírito representa isso.

Acontece que quando Mercúrio está retrógrado as atividades externas ganham mais informações do que aquelas que precisamos para cumprir nossas tarefas. Aí nos lembramos do gosto do bolo de festa da mãe enquanto falamos com um cliente, surgem milhares de possibilidades mais interessantes do que aquele texto chato que precisamos ler, músicas estranhas que nos remetem a outros tempos surgem na cabeça (principalmente aquela que só lembramos uma frase horrível), sabemos exatamente o que queremos dizer, mas sem encontrar as palavras, lembramos de levar cangaprotetorguardasolcadeirachapeu para a praia e na hora de pagar o sorvete percebemos que esquecemos a carteira em cima da mesa. Isso significa em primeiro lugar que os tempos de Mercúrio retrógrado são para verificar como vai o seu humor e sua capacidade de rir de si mesmo. Tem muita gente que sofre durante os tempos de Mercúrio Retrógrado porque têm uma autoimagem idealizada de pessoa séria e focada, e aí quando vivenciam essas coisas precisam sair da zona de conforto e vivenciar um descontrole bem incômodo. Esses são períodos em que precisamos treinar pedir ajuda, o que também é muito incômodo para a maioria das pessoas, mas que é a melhor estratégia que encontrei: se você tem que assinar algum documento, peça para alguém que você confia dar uma lida antes; se você precisa apresentar algo para seu chefe ou para a escola, treine antes com alguém que sabe do que você está falando e escute as críticas e recomendações. Se der para adiar atividades que precisam de uma linha reta para serem resolvidas, bacana, mas você não vai adiar sua viagem de férias com a família, por exemplo, porque Mercúrio estará aparentemente andando para trás! Vai haver mais riscos de você perder a mala, principalmente se você não queria mesmo passar as férias na casa da sogra mas não conseguiu achar nenhum argumento suficientemente lógicos para mudar os planos para os Lençóis Maranhenses, além do “eu quero tanto”. Muitas vezes a lógica interna é diferente da lógica externa e isso fica evidente nessas épocas. Mercúrio retrógrado deixa em maior evidência a lógica interna, por isso tanta confusão.

Essas razões que a própria razão desconhece são atribuídas normalmente ao feminino, e, aliás, muitas vezes para chamar a mulherada fraca. Ou de louca. Ou de bruxa. Por isso ficamos tão receosos de confiar nessa outra racionalidade. Bom para ouvir música, visitar museu, dançar, ler novela e conversar com o inconsciente. Por que isso tem que ser assim horripilante, feito filme B de terror? Um pouco de cuidado e bom humor pode fazer com que esse seja um tempo bem frutífero. O seu trabalho exige foco mental? Você está em época de provas? Você tem um monte de coisas sérias e importantes para fazer e não tem tempo para fazer essas coisas? Então meditação por 20 minutos, 3 vezes ao dia, pode ajudar você a relaxar. Ou reservar algum tempo do seu dia e/ou da sua semana para fazer essas coisas para que elas não precisem invadir sua vida devidamente controlada. Realmente seria interessante que você começasse a viver esses dias de Mercúrio retrógrado como uma oportunidade de saber como você está com você mesmo, e não como algo que vai atrapalhar sua vida.

E é por isso que as gravuras Etruscas me fizeram pensar na alegria do Mercúrio Retrógrado. Os Romanos arrasaram a maioria das construções etruscas, que parece que eram tão avançadas como a dos próprios romanos, e só sobraram os túmulos. Aquilo que sabemos sobre esse povo vem, então, da relação que eles tinham com a morte, e ali encontramos homens e mulheres unidos e felizes, sexo abundante e muita gente fazendo música e dançando. Uma das funções de Mercúrio é de psicopompo (psyque = alma + pompo = guia), um guia da alma humana através dos caminhos até o reino dos mortos e de volta ao reino dos vivos. Podendo ele caminhar pelas polaridades da vida – céu e terra, nascer e morrer, dia e noite –, existe nesse planeta o potencial de trazer para a consciência uma compreensão muito mais abrangente e profunda do que a que estamos acostumados cotidianamente, quando Mercúrio se encontra retrógrado. Aqui pode estar a solução para o problema insolúvel, a verdade pressentida, a intenção não revelada. Seja no mapa natal ou no trânsito, vale a pena deixar a alma acompanhar Mercúrio em sua jornada, pois pode ser que ele te mostre algo muito melhor do que seu medo permitiria enxergar. 



Obs. Esse texto foi pensado, elaborado e publicado durante o movimento retrógrado de Mercúrio como um desafio para mim mesma. Escolhi um período em que, mesmo retrógrado, ele estaria em trígono com o Mercúrio do meu Mapa Natal, que afinal, né?.. Não foi o texto mais fluido para trabalhar, mas também não foi nada muito diferente do meu normal, e eu não tenho Mercúrio Retrógrado no mapa. Uma coisa bem interessante que aconteceu, foi encontrar muito mais informações não verbais. Eu tive que me controlar para não colocá-las todas aqui. Elas serão bastante úteis para as aulas desse ano...

domingo, 10 de agosto de 2014

Saturno, Escorpião e Vazios Iniciáticos


“O mundo do dançarino é alcançado por dias e dias de trabalho, semanas de trabalho, anos de trabalho. É aqui no estúdio que o bailarino aprende seu ofício. O domínio de seu instrumento que é o corpo humano. Seu objetivo é a liberdade, mas a liberdade só pode ser conquistada através da disciplina. Disciplina imposta por você mesmo, sobre você mesmo. Ou o pé está esticado ou não está. Nem uma porção de sonhos o esticará por você.”

Martha Graham, bailarina contemporânea com Plutão em Trígono com Saturno.



Tenho aprendido muito esses anos em que o planeta Saturno atravessa o signo de Escorpião, principalmente com pessoas que estão passando pelo retorno de Saturno nesse signo. Em finais de 1981, Saturno inicia um processo de conjunção com Plutão nos últimos graus de Libra que vai até outubro de 1983, com Saturno já em Escorpião. Então, nos últimos três ou quatro anos, venho conversando com muita gente que ao enfrentar o retorno de Saturno também tem que enfrentar questões plutonianas. Agradeço muito a todos pela confiança e aqui vai um pouco do que andei conversando e pensando por aí sobre isso.

Tanto o retorno de Saturno quanto suas temporadas desafiantes anteriores, a cada sete anos aproximadamente, representam iniciações à vida adulta. São tempos em que temos que sacrificar confortos lunares e familiares em nome de uma maior participação no universo social mais amplo. A primeira oposição de Saturno por volta dos quinze anos costuma ser particularmente difícil e marcante porque o adolescente sabe que tem que sacrificar sua infância para poder entrar na “tchurma”, e para isso ele acredita ter que esconder muito profundamente (principalmente de si mesmo), todo o medo e insegurança que tem para não se sentir humilhado. Aí começam seus problemas com Saturno e a compreensão equivocada sobre o que é o mundo adulto.  É comum mães aflitas de adolescentes nessa fase de oposição me procurarem porque seus filhos, que eram muito cordatos  e responsáveis, começam a ir mal na escola e passam a se comportar de maneira agressiva dentro e fora de casa. Por mais solidária que eu possa ser com as aflições maternas por vivermos em uma sociedade profundamente desigual e violenta, do ponto de vista simbólico essas pessoas estão em busca de instruções para a vida adulta, precisam se arriscar para além da proteção lunar, e se estão se comportando dessa maneira “revoltada” provavelmente aprenderam em casa e no meio em que vivem que essa era a maneira para enfrentar a dor inevitável da vida. Lembrando que as crianças não aprendem através dos discursos politicamente corretos que fazemos para elas, mas através das atitudes, das brigas, reclamações e climas entre os pais, da maneira como os pais lidam com frustração e com os “outros”, com os comentários maldosos e “divertidos”, com a forma como se torce no jogo de futebol ou como se dirige no trânsito. Outra coisa que costuma se manifestar de maneira intensa porém inconsciente nessa fase, é a vida não vivida pelos pais, como diz Jung em O Desenvolvimento da Personalidade (CW XVII, Ed. Vozes, pg 47, par 87): “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais ou antepassados não viveram (pois se trata de fenômeno psicológico atávico do pecado original). Essa afirmação poderia parecer algo de sumário e artificial sem esta restrição: essa parte da vida a que nos referimos seria aquela que os pais poderiam ter vivido se não a tivessem ocultado mediante subterfúgios mais ou menos gastos. Trata-se pois de uma parte da vida que (...) foi abafada talvez por uma mentira piedosa. É isso que abriga os germes mais virulentos.” Um ótimo filme que fala sobre isso é Em Um Mundo Melhor (Haevnen em Dinamarquês, que significa Vingança), da diretora Susanne Bier, de 2010.

Então o que fazer quando se revela uma grande ilusão a crença de que se você fosse um(a) bom(a) filho(a) seus problemas desapareceriam? Isso é muito frustrante, já que gastamos muito tempo da nossa infância aprendendo a reagir a nossos pais para conseguir o que queríamos e precisávamos, nos apoiando em nossas Luas. Precisamos entender que a “adultice” rebelde que se coloca no lugar também tem resultados problemáticos, já que superar as emoções infantis implica em saber reconhecê-las, não negá-las. Chega um tempo em que precisamos ver que o anseio por uma existência livre de problemas deve ser posto de lado em favor da aceitação madura da responsabilidade pela própria vida, e essa mudança constitui não apenas a ativação da consciência adulta, mas também uma forma de escolha. Esse é o significado mais profundo de Saturno, e é nesse sentido que ele ganha sua merecida fama de exigir sacrifício e trazer dificuldades.

Sacrifício é um tema mitológico poderoso encontrado em quase todas as culturas, um padrão arquetípico que exige a desistência de alguma coisa para que algo maior seja conquistado. Saturno é exatamente aquele que exige o abandono da dependência da infância em favor do domínio de si e da criatividade da vida adulta, mas fazer isso cortando o contato com o que se sente costuma gerar o oposto do que se busca, pois então nos deixamos abusar e nos tornamos abusadores. Simbolicamente falando, Saturno tem que ser o elemento complementar, o parceiro da Lua, e não seu inimigo ou substituto. Mesmo assim é o caminho mais comum que as pessoas costumam escolher. Como não temos mais os velhos sábios nessa sociedade que venera a juventude, as crianças acabam tendo que fazer suas iniciações entre si mesmas, o que é bem triste e sofrido. Quando vejo esses pais com medo da raiva dos filhos e/ou querendo “poupar” seus filhos do enfrentamento com a vida adulta, penso no que será que essas crianças terão que viver no retorno de Saturno para que possam assumir o fardo de sua jornada individual, com toda a dor e solidão que ela necessariamente traz. Como diz James Hollis, analista junguiano, ao falar da cura do masculino em Sob a Sombra de Saturno (Ed. Paulus, coleção Amor e Psique): “nenhuma outra pessoa, nem seus pais nem sua tribo, poderia poupar-lhe esta jornada porque senão também estariam roubando sua capacidade de lutar e alcançar seu pleno potencial”. É essa iniciação que os adolescentes buscam na época da oposição de Saturno, e isso lhes é negado há muuuitas gerações. Uma imagem que me parece boa para ilustrar essa carência de iniciação adulta é o “fenômeno” dos jovens milionários: homens que antes dos 30 anos já conquistaram tudo aquilo que se diz ser importante (que se traduz por dinheiro, muuuito dinheiro), que surgiu nos anos 90, com Urano e Netuno em Capricórnio, em trígono com Plutão em Escorpião. Que tal uma sociedade que tem como imagem de sucesso um menino branco, mimado e cercado de brinquedos? Você acha mesmo que isso trará verdadeira segurança?

Desde o início da Era Industrial somos ensinados a entregar nossos corpos e almas em troca de dinheiro para sobreviver, e agora nós e nossas crianças estamos nos dando conta de que temos que lutar para recuperá-los, pois esse preço é muito alto. Quando a nossa consciência muda, as nossas vivências simbólicas também mudam. Isso tem sido muito bonito e assustador de ver.

Uma das coisas importantes que aconteceu quando deixamos de ser tribais para construir civilizações, sociedades mais amplas e diversificadas, foi a perda gradual das iniciações masculinas, que transformava meninos em homens. Para se ter uma ideia de até onde fomos nisso, um livro lançado nos Estados Unidos no final dos anos oitenta com dados de uma ampla pesquisa feita durante mais de 10 anos, nos anos sessenta e setenta, citado em Finding Our Fathers: How a Man’s Life Is Shaped By His Relationship Whith His Fathers (“Encontrando Nossos Pais: Como a Vida do Homem é Moldada Pela Sua Relação com Seu Pai”, em tradução livre, ainda não publicado no Brasil), de Samuel Osherson, indica que apenas dezessete por cento dos homens norte-americanos tiveram relacionamentos positivos com os pais. Na maioria dos casos o pai estava morto, divorciado e ausente, quimicamente debilitado ou emocionalmente distante. Se essa estatística estiver ao menos perto da verdade e puder ser generalizada, isso significa uma quase total ausência de referencia masculina. De fato, é impressionante a quantidade de pessoas que foi criada quase que exclusivamente pelas mães ainda hoje em dia.  É compreensível, então, que muito do que construímos tenha como função substituir e/ou denunciar esse masculino que falta. Novamente, quem nos separa do universo materno infantil e nos leva até o mundo mais amplo adulto é aquilo que a psicologia analítica chama de Arquétipo do Pai, ao qual se liga Saturno, e que em nossas vidas ganha os primeiros contornos através da referencia de autoridade masculina da infância. Como não honrar profundamente todos esses homens que hoje em dia reivindicam o direito de serem pais, que se reúnem em busca de novos parâmetros de masculinidade, que aprendem a dançar com as mulheres, que se arriscam a tatear no escuro para encontrar uma nova maneira de ser no mundo? Mas abrir mão daquilo que se conhece em direção ao desconhecido não é exatamente o que precisa fazer o jovem herói que segue seu coração?

As iniciações femininas ligadas à mitologia da Grande Mãe, ao grande círculo, ao tema da morte/renascimento e ao Eterno Retorno, apesar de também terem sido violentadas de muitas maneiras, não podem ser totalmente esquecidas enquanto tivermos um corpo físico e vivermos a realidade de nascer através do corpo de uma mulher para depois morrer (o que parece ser uma tristeza para alguns neurocientistas e buscadores de Inteligência Artificial). Mas mesmo essas iniciações perdem muito do seu sentido sem uma face masculina complementar saudável e por isso acabam se distorcendo em algo muito grande, poderoso e perigoso, mais temido que reverenciado. Já a mitologia masculina fala da busca, da jornada da inocência em direção à experiência, das trevas para a luz, da saída do lar para o horizonte mais amplo, e isso significa responder ao chamado para algo desconhecido. Nesse sentido exige uma escolha do herói, e percebemos sua ausência nas enormes dificuldades que tanta gente tem de sair de casa, de abrir mão da dependência infantil e de experimentar uma existência diferente daquela em que se foi criado. Os sofrimentos ligados a Saturno tem sentido iniciático exatamente por evidenciar essas dificuldades e essa falta sem dar ouvidos ou espaço para as desculpas que nos damos para não assumirmos a responsabilidade do trabalho do nosso caminho, e essa é a verdadeira função paterna. Como disse a terapeuta e consteladora familiar Evanilde Torres: “É a partir do corpo do Pai que a vida explode para cada ser vivo. Por esta razão, Pai significa movimento, impulso. É através do nosso Pai que o mundo se abre como opção. Pai é tapa na bunda para impulsionar, é ‘levanta pra cair de novo’”. Cada ciclo mítico precisa ser cumprido várias vezes em nossa vida e a falta de um implica no desequilíbrio do outro. Hoje em dia, com a demanda que homens e mulheres enfrentam para a manutenção e exploração criativa do mundo ao mesmo tempo, precisamos mais que nunca desenvolver esses dois potenciais que nos pertencem e nos fazem inteiros.

Somos filhos de não iniciados, os manuais de instruções não funcionam e vivemos em uma sociedade decadente... Adivinhem onde vamos encontrar novos caminhos? Vai pra dentro, criatura! Uma das descobertas bacanas que C.G.Jung fez foi a de que o inconsciente busca sempre o equilíbrio e a cura, então é lá que podemos encontrar respostas que o mundo externo não tem. Jung chamava esse ir para dentro de individuação, e precisamos de coragem e um profundo desejo de conhecer a verdade para encarar essa aventura sem nos perdermos.

Nossos guias internos para esse universo inconsciente são as contrapartes opostas à nossa consciência de gênero, ou seja, os homens têm uma guia feminina que foi chamada de Anima e as mulheres tem um guia masculino chamado de Animus. Faz sentido que aquilo que nos oferece um caminho para o inconsciente tenha uma identidade oposta àquela que trabalhamos conscientemente, não? A Anima tem uma natureza de Eros, yin, passivo, ligada ao corpo, ao instintivo e às emoções, enquanto o Animus tem uma natureza yang de Logos, ligada ao mental, à ação e ao intuitivo. Ou seja, os homens falam com o inconsciente através dos sentimentos e as mulheres através do pensamento e da ação. Vocês conseguem ver o quão ruim são as caricaturas do homem que não sente e da mulher que não pensa? Não posso deixar de ver essas caricaturas de masculino e de feminino diretamente ligados à necessidade de homens e mulheres lutarem pelo direito de não serem humilhados e violentados. E claro que a melhor maneira de nos conscientizarmos desses elementos orientadores do inconsciente será através dos relacionamentos com pessoas do gênero oposto ao nosso (principalmente nos amorosos, mas não apenas), pois aqui temos a maneira mais automática e pessoal de projeção do nosso universo interno sobre o mundo externo. Buscaremos nos outros aquilo que pode nos mostrar quem somos. Claro que as primeiras pessoas a iluminarem esses arquétipos são nossos pais ou quem ocupou o lugar deles na nossa infância, tanto conscientemente, nos mostrando como homens e mulheres se comportam, quanto inconscientemente, servindo de projeção para nossa contraparte inconsciente de Anima e Animus. Com o tempo vamos colorindo essas figuras com outros encontros e no inconsciente temos uma fonte inesgotável de imagens para alimentá-las. A falta de figuras masculinas adultas e a onipresença feminina em nossas formações vão criar movimentos tanto conscientes quanto inconscientes, e nosso desafio é estar entendendo como essas partes agem para poder trabalhá-las a nosso favor, para que sejamos cada vez mais inteiros. Se as vivências com aqueles que nos criaram foram muito complicadas, teremos mais desafios na hora de trabalharmos com esses elementos inconscientes, os homens quando tiverem que trabalhar suas emoções e corporeidade individualizada e as mulheres na hora que expressam seu espírito em domínios coletivos, pois a tendência é de deixar o inconsciente agir de maneira livre demais para compensar os distúrbios conscientes. Isso costuma dar mais trabalho, afinal, aquilo que nós rejeitamos vai para o inconsciente, que aceita tudo, e aí vamos criar uma briga entre o que o inconsciente traz e a consciência que construímos de nós mesmos. E haja Rivotril para tentar aplacar essa briga... Isso será explicitado através dos relacionamentos com nossos afetos e desafetos do gênero oposto, onde nosso inconsciente se projeta para ganhar atenção e consciência. Agora, adivinhem com que tipo de forças Escorpião trabalha?

O elemento Água sempre tem um canal de comunicação com o inconsciente que precisa estar o mais limpo possível para que se viva bem onde esses signos dominam. Câncer tem esse canal via inconsciente familiar ou sistêmico, Peixes via inconsciente coletivo e Escorpião via inconsciente pessoal, que é exatamente esse campo onde nos deparamos com o estranho, o outro, o “não eu”, e projetamos nosso inconsciente. Transformamos o outro em símbolo daquilo que nos habita internamente e que não queremos ou não podemos ver. Por isso o signo de Escorpião, a casa oito e Plutão, estão tão associados à ideia de crise, no sentido de conflito mostrado pelo I Ching, onde o Céu Criativo tende a subir e a Água Abismal tende por sua natureza a descer (hexagrama seis) Aqui podemos ver o conflito entre nossa consciência racional e o material que foi parar no inconsciente por medo e/ou culpa, criando um abismo dentro de nós. As nossas ligações emocionais com os “outros” de nossa vida sempre nos forçam em direção à nossa natureza sentimental, que precisa ser primeiramente identificada e então examinada para poder ser transformada, e nada nos faz ir nessa direção mais rapidamente do que a frustração. A velha máxima satriana, “o inferno são os outros” é absolutamente real aqui. Saturno em Escorpião vai garantir que a relação com o “outro” entre nesse nível de conflito e obrigue a pessoa a passar por processos dessa natureza se ela escolher se transformar em adulto, e esse tipo de iniciação é realmente algo para quem tem coragem de ir fundo na vida. A única arma que eu consegui descobrir que funciona nessas circunstâncias é a verdade, a coragem para ver as coisas como elas são e a aceitação de que é assim que são. E gente, eu garanto que fazer Heliski no Himalaia ou BASE Jumping nas Torres Petronas de Kuala Lampur é para os fracos, pois quando o abismo está dentro, não há paraquedas que amorteça a queda. Mas só quando se experimenta pular é que se descobre que o abismo não era tão grande como parecia olhando de fora.

A grande força que Escorpião traz enquanto Água Fixa é aquela ligada às energias criativas e procriativas que esse signo controla e através dos quais entra em contato com os outros. Nessa esfera compreendemos que sexo tem pouco a ver com o contato físico entre as pessoas e muito mais a ver com forças emocionais e químicas, além de ser uma das vivencias que mais afeta o nosso universo mental. O fluxo que pode ocorrer durante o ato sexual entre duas pessoas por um breve segundo traz a experiência de perda da percepção individual e o vislumbre de se sentir um com outro ser humano. É nesse sentido que Escorpião se liga à ideia de morte, pois aqui temos a morte da personalidade consciente que se entrega para esse tipo de suspensão. Aliás, todos os tipos de transe que utilizam meios físicos de maneira proposital, como o uso de drogas psicotrópicas com fins religiosos ou não, as danças e ritmos hipnóticos, etc., também fazem parte dessa esfera Escorpião/casa 8/Plutão, pois têm como objetivo exatamente esse êxtase de esvaziamento do eu. Claro que depois, quando o eu recupera seus contornos e percebe as modificações que a união com o outro provocou, pode ficar bem temeroso. Que atire a primeira pedra aquele que nunca se retraiu frente ao medo da aparente vulnerabilidade emocional que o envolvimento maior com o outro traz. O que as terapias sistêmicas (como a constelação familiar, por exemplo) estão verificando é que depois que a união ocorre não é mais possível excluir totalmente o parceiro, mesmo que o mental acredite piamente nisso. Se isso é bom ou ruim, cada um deve fazer esse julgamento por si só. Como tem sido a sua escolha por parceiros sexuais? E mais importante, como você tem se comportado como parceiro sexual? Pois Saturno em Escorpião vai exigir um mergulho mais profundo nesse universo e cria a necessidade de um conhecimento prático de si mesmo e daquilo que buscamos no “outro” que nem todos estão dispostos a fazer. De qualquer maneira ele irá cobrar o preço pela nossa ignorância. Tem sido uma surpresa e uma alegria ver esse povo passando por esse Retorno de Saturno com tanta disposição de ir mais fundo, e que entendem exatamente o que quer dizer isso. Parece que a única coisa que Saturno exige para fazer a iniciação adulta é a disposição para ir além da esfera lunar materna conhecida. Saturno com certeza encontrará a parceria perfeita para você fazer isso.

A estratégia tradicional de Saturno para nos levar ao processo de crescimento consciente adulto é através da falta e da frustração que criam um imenso desejo de ter aquilo em nossas vidas, e para isso nos esforçamos nessa direção. Em termos míticos representa a parte em que o herói tem que enfrentar o deserto se quiser chegar ao seu destino. Com Saturno em Escorpião o mais comum é que isso se manifeste através de um histórico de falta de contato emocional mais profundo na família, seja por morte real ou por distanciamento afetivo, principalmente por parte do pai em se tratando do nosso titã. Algumas vezes há pouco contato físico com a criança em uma fase que essa é única maneira compreensível para ela, ou então os problemas sexuais dos pais criam uma atmosfera de medo e hostilidade que é captada mas não explicitada, deixando tudo muito confuso e trazendo problemas quando se trata de contato físico, e muitas vezes há realmente uma ameaça física à criança. Seja como for, se cresce com um sentimento de isolamento e uma certeza de que não se pode compartilhar essa sensação para aliviar a dor. Em As Máscaras de Deus, Mitologia Criativa (Editora Palas Athena, 1994), Joseph Campbell diz que “O deserto (...) é qualquer mundo no qual (...) a força e não o amor, a doutrinação e não a educação, a autoridade e não a experiência prevalecem na organização da vida, e no qual os mitos e ritos impostos e recebidos não estão (...) relacionados com as verdadeiras percepções, necessidades e possibilidades interiores daqueles em quem são incutidos.” Pois com Saturno em Escorpião (e também na casa 8), a pessoa busca união como água no deserto, e isso transforma as relações afetivas em algo muito intenso e com necessidades emocionais muito profundas. Assim como os adolescentes acreditam esconder o que sentem por traz de uma cara de mal e um comportamento rebelde, a nossa tendência ao se deparar com Saturno é ficar com tanto medo que se evita o assunto ou então se finge não ter nenhuma dificuldade com isso. Os perfis típicos aqui são do celibatário cheio de hostilidade para com os sexualmente ativos, e do abertamente promíscuo, que tenta seduzir qualquer coisa que apareça pela frente. Não é preciso análises muito profundas para perceber que temos nos dois casos um problema fundamental no relacionamento emocional com outra pessoa, e tanto em um caso quanto no outro se está preso na armadilha que Saturno joga quando em signos de Água, dizendo que se pode transformar um valor emocional em um valor material. Os dois sentimentos que mais nos deparamos quando se trata de Saturno são medo e culpa, que bloqueiam os dois chacras básicos, ligados à sobrevivência e ao prazer, e ao tentar não sentir isso teremos problemas de frigidez. Pronto, confirmamos nossos medos de não conseguirmos nos unir a outra pessoa, aumentando nosso medo e nossa culpa. É importante entender não sentir é uma defesa emocional, por mais fantasias de racionalidade que se coloque em cima.

Entramos nesse ciclo porque tentamos colocar em outras pessoas a possibilidade de curar as feridas iniciáticas de Saturno, criando uma fantasia mais ou menos consciente de que se poderá renascer e transformar a dor através de alguém que não tenha as restrições emocionais que se vê em si mesmo. As vezes demoramos muito tempo nos frustrando para aceitar que a falta que tivemos em nossa história não poderá ser preenchida nunca por coisa alguma, e que portanto temos que fazer algo com aquilo que vivemos em vez de criar ilusões para tentar apagar aquilo que nos feriu. Só quando a pessoa é suficientemente honesta consigo para entender que em seu íntimo há algo que precisa se desenvolver através do próprio esforço (como todo mundo), ela estará pronta para compreender e disciplinar sua natureza sexual de modo a expressar essa força de maneira positiva, em busca da conquista de uma real união, profunda e verdadeira, feita não apenas de fantasias celestes, mas de muito trabalho consigo mesmo, e independente de quem for sua parceria. Na verdade ninguém nasce pronto, e precisamos mesmo de muita experiência em ser quem somos para podermos ficar inteiros. O primeiro passo para isso quando se trata de Saturno em Escorpião é conseguir se revelar para o outro em sua fraqueza, sabendo que o outro não pode salvá-lo, e correr o risco de perdê-lo. Uma das coisas que mais alimenta o lado negro de Saturno é a vergonha que temos das nossas dificuldades naquela área. O intenso isolamento emocional que o Saturno escorpiniano nos remete faz com que essa vergonha seja quase insuportável, e a força que se tem que desenvolver para ultrapassá-la pode parecer demasiada. Saturno governa a estrutura óssea e é através dele que desenvolvemos a mente concreta ou científica, por tanto é através da tentativa e erro/acerto que experimentamos na nossa área saturnina que vamos conseguir criar uma estrutura capaz de realmente sustentar quem somos. Na verdade o revelar-se para o “outro” é um revelar-se para si, e nisso consiste a cura, em conseguir olhar para a própria dor sem se abandonar, mesmo que o “outro” faça isso. Através do nosso inconsciente temos essa capacidade incrível de transformar coisas, pessoas e vivências em símbolos, e assim criar imagens mágicas capazes de transformar nossa existência e nos fazer viver em diferentes níveis ao mesmo tempo. A imagem mágica, ou o símbolo, é portanto a máquina que transforma a energia psíquica. Ao nos revelar ao outro podemos ver com mais clareza também quem o outro é, e ver se realmente estamos disponíveis para aquela relação ou se apenas estávamos usando a parceria para a projeção inconsciente. Entendemos que a nossa percepção da realidade muitas vezes pode conflitar com aquilo que vivemos, e assim acolher todas as dúvidas e ideias que surgem desse confronto, trabalhando simbolicamente com esse material. Normalmente fazemos julgamentos morais a respeito dessas projeções e sofremos bastante, mas isso apenas significa que a estamos olhando com olhos da consciência, e se conseguimos seguir em frente e nos perguntar de onde veio essa “ilusão”, poderemos nos voltar para dentro e descobrir todo um mundo, com novos modelos e possibilidades de liberdade. Essa é a grande vantagem de se fazer terapia, onde se cria um ambiente seguro para treinar o revelar-se para o mundo. É por isso que sempre digo que a linha que o terapeuta segue é o menos importante, pois o que se precisa é alguém que possa receber as suas projeções, que possa se sintonizar com seu inconsciente, e isso se revela na primeira entrevista e não no curriculum do terapeuta.


Saturno não dá nada de graça, como Júpiter faz, e por isso mesmo podemos reconhecer com muita consciência o valor daquilo que conquistamos por seu intermédio. Saturno sempre exigirá a “disciplina imposta por você mesmo, sobre você mesmo” para que se possa conquistar a liberdade de expressão e de realização mais profunda. Se não tivéssemos uma certeza de alma a respeito do enorme potencial que existe em nós por baixo daquela falta/dor/ferida saturnina, essa dinâmica não teria tanta força em nossas vidas. O Saturno em Escorpião tem como tarefa básica aprender a ser sincero emocionalmente para poder sair do fosso de solidão que se caiu, passando por toda a raiva, impotência, rivalidade e frustração acumulada durante a vida. Uma das boas coisas que ganhamos quando aceitamos a tarefa de nos tornarmos adultos através de Saturno é que vamos aprendendo a escolher as lutas que valem a pena em vez de ficarmos brigando conosco o tempo todo, pois aprendemos a olhar e aceitar a realidade como ela é. A sensação íntima e dolorosa de ser vencido emocionalmente por quem se ama se transforma em uma capacidade refinada de avaliação de até onde o outro está disposto a ir sem se deixar prender por isso. Os poderes de cura e de vida disponíveis no inconsciente são infinitos para quem quiser buscá-los através do coração. A união íntima que se quer tanto fora só é possível através da relação amorosa com nossa(s) contraparte(s) interna(s), pois aí se pode amar ao próximo por se amar a si mesmo. Não consigo imaginar nada que seja mais bonito e poderoso que isso.


Hoje é dia dos pais, então dedico essa postagem ao meu, que me colocou no mundo e me deu o suficiente para fazer algo bacana com a vida que ganhei dele. Muita gratidão.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Por Hoje ser Lua Cheia

E em Escorpião, em conjunção com Saturno
"E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra serie de idéias e atos humanos" carta aos diretores de asilo de loucos. Antonin Artaud

sábado, 19 de abril de 2014

E Quiron Caminha Por Peixes


“Nada disso pode estar acontecendo de verdade. Se você se sentir mais confortável assim, pode pensar no acontecimento simplesmente como uma metáfora. Religiões são, por definição, metáforas, apesar de tudo: Deus é um sonho, uma esperança, uma mulher, um escritor irônico, um pai, uma cidade, uma casa com muitos quartos, um relojoeiro que deixou seu cronômetro premiado no deserto, alguém que ama você – talvez até, contra todas as evidências, um ente celestial cujo único interesse é assegurar-se de que o seu time de futebol, o seu exército, o seu negócio ou o seu casamento floresça, prospere e triunfe sobre qualquer oposição.
Religiões são lugares para ficar, olhar e agir, pontos vantajosos a partir dos quais se observa o mundo.
Então nada disso está acontecendo. Tais coisas não podem ocorrer. Nunca nenhuma palavra sobre isso é literalmente verdadeira.”
Neil Gaiman in Deuses Americanos


Em fevereiro de 2011 Quiron entrou em Peixes e ficará por lá até março de 2019. Em 2012 Netuno também entrou em Peixes e fez conjunção com Quiron. Desde o final do ano passado até o meio desse, Saturno em Escorpião estará em trígono com Quiron. Agora estamos com Júpiter, regente do ano, também em trígono com esse estranho asteroide-meteoro-centauro. O que ando observando esses anos é que Quiron vem se mostrando como sub tom de todos os processos mais profundos que andam ocorrendo nas vidas íntimas das pessoas, e a cada dia, a cada consulta e a cada aula isso fica mais claro. Também a cada sessão de terapia. O enorme barulho que Urano em Aries enquadrando-se com Plutão em Capricórnio vem fazendo (principalmente esse mês, com a enorme Cruz que envolve os Luminares, Mercúrio, Marte e Júpiter em um eclipse!), faz com que esse subtexto de Quiron pareça mais delicado ainda. Claro que estamos muito atentos para essa briga toda no Céu como na Terra em signos cardeais, que iniciam novos tempos e movimentam-nos para fora, mas esses movimentos sutis da alma muitas vezes nos levam a novos patamares de compreensão interna que podem muito bem nos trazer caminhos mais interessantes, principalmente quando é tão claro o quão doente estamos em nossa humanidade.

Quiron traz em si a dor mais profunda do paradoxo que somos enquanto seres conscientes capazes de transcender a própria individualidade, mas que existem a partir de um corpo físico mortal e limitado.  Por isso o tema central do mito de Quiron é a ferida que não pode ser curada (se você precisar de informações mais detalhadas a respeito, talvez seja melhor ler primeiro http://tecadias.blogspot.com.br/2008/09/quiron-visita-do-sbio.html). “Ferida” em grego é “traûma”, e os estudos dos traumas psíquicos têm sido das coisas mais interessantes que ando lendo ultimamente e tem me ajudado bastante a pensar sobre o que está acontecendo.

De maneira bem generalizada podemos considerar como traumatizante qualquer experiência que tenha sido rápida demais, forte demais ou ameaçadora demais para a existência. A palavra chave aqui é “demais”. Essa medida do que é demasiado para a criatura é absolutamente pessoal, pois coisas que são apenas um susto para alguns, se transformando em riso após 5 minutos, pode deixar outra alma absolutamente destroçada, criando uma situação em que não é possível nem correr nem lutar, como nosso cérebro réptil sabe fazer, e então algo em nossa psique se paralisa e se finge de morto para enganar ao predador. Essa é uma boa estratégia para o momento da ameaça, se conseguíssemos recuperar o movimento e a vida quando passasse o problema, como fazem os outros animais. O mais comum entre nós humanos, porém, é darmos um jeito de nos separarmos dessa parte para sobreviver, como uma lagartixa que deixa o rabo para traz e assim consegue escapar.  Só que essa parte da nossa psique nunca vai poder nascer de novo enquanto não curamos essa fragmentação e essa paralisação decorrentes do trauma, e nunca teremos o sentimento de sermos inteiros enquanto isso não acontece. Todos nós passamos por traumas de uma maneira ou de outra ao longo do nosso desenvolvimento: nascer, ganhar um irmão, entrar na escola, mudar de casa, perder um animal de estimação, presenciar uma briga entre os pais, achar que estava fazendo algo superbacana e ser duramente repreendido ou qualquer outra situação aparentemente normal pode criar um sentimento de vulnerabilidade sem saída que gera a paralisação da alma que é o trauma. Essas situações “cotidianas” podem ser mais difíceis de detectar por conta das explicações e justificativas que podemos acumular sobre elas, diferentes de situações mais claras de perda e/ou abuso físico, mental ou psicológico, claramente traumatizantes e externamente reconhecidos. Além disso, a genética moderna tem apontado para a possibilidade da expressão de um gene ser modificada por estresse traumático sem alterar o DNA subjacente desde 1941, com a “diversidade do efeito de posição” do geneticista vencedor do prêmio Nobel Hermann Joseph Muller. Essa modificação é transmitida por várias gerações, e isso significa que podemos também herdar traumas de nossos antepassados, que genes podem ser “ligados e desligados como um interruptor e os efeitos são transferidos, mesmo quando a situação inicial já passou. A expressão de genes muda, mesmo quando o hardware subjacente não é afetado” (Felsenfield, 2007). 

Olhando para isso com cuidado, podemos perceber que sentimentos bem difíceis como os de estar perdido na vida, de não ser amado, de vazio, de que falta algo ou que precisamos de algo que não vemos, de medo e vontade de fugir, de falta de vida e significado, com todas as suas manifestações emocionais básicas, como ansiedade, depressão e pânico – para falar das mais populares – e para as quais não encontramos explicações racionais, podem ser usadas exatamente para nos levar ao encontro dessa parte traumatizada que ficou no passado, paralisada e fragmentada, para que conseguíssemos sobreviver até nos tornarmos adultos e desenvolvêssemos os recursos necessários para resgatá-la. Enquanto isso não ocorre, o trauma nos “rapta”, nos envolve em um tipo de transe que nos remete novamente à situação traumática, nos fazendo reagir de maneira inadequada – ou excessivamente restritiva ou através de suporte inadequado – recriando o trauma e aprofundando nossa dor. Devemos a essa parte da psique que se sacrifica a nossa sobrevivência e realização adulta, e é a consciência desses sintomas que nos levam a buscar ajuda para fazer esse resgate. Quando se desiste de tentar colocar marido/esposa, filhos, pai/mãe, trabalho, ideologia, nicotina, álcool, comida, vida social, títulos, estudos, viagens, ou seja lá o que a gente tenha tentado empurrar buraco abaixo para enterrar de vez essa nossa parte e/ou substituí-la sem sucesso, Quiron se mostra como a nosso potencial mais importante para ser feliz, pois é aquele que sabe o caminho até a ferida imortal que carregamos e como fazer para resgatar aquilo que deixamos para traz e que agora, como adultos, precisamos para estar completos. É por isso que ele é o mestre de todo e qualquer aspirante a herói da mitologia greco-romana e um arquétipo tão poderoso de nossa psique. E afinal, o que mais nos mantêm vivos, enfrentando todos esses limites e frustrações de viver em um corpo físico cercado por um monte de outros seres igualmente limitados, senão continuar a acreditar que podemos ser muito muito felizes? Pois me parece que os sonhos de felicidade estão diretamente conectados com essa nossa parte traumatizada que espera por resgate.

E aí pegamos nosso cavalo branco, recebemos a benção de Quiron e vamos lá, resgatar nossa parte ferida, que sorri feliz em nos ver finalmente, né? Se isso acontecer tenha certeza que você está sendo enganado. Afinal, quem poderia receber sem muita desconfiança aquele que nos deixou ali para morrer, mesmo que possamos nos encher de explicações e justificativas muito razoáveis a respeito.

Quando Quiron e sua ferida começam a fazer contato com algo em nosso mapa, as coisas pouco a pouco vão se tornando bastante desagradáveis, para usar um eufemismo educado.

E a primeira parte da cura é exatamente desenvolver a capacidade de suportar a dor e sofrimento que esse fragmento traumatizado de si mesmo guarda e que Quiron aponta. O truque mais comum utilizado por Quiron é o de nos levar a uma situação que desejamos ou julgamos boa e então nos dizer que podemos ter muito mais se nos atrevermos a enfrentar a ferida que ele nos mostra e que compreendemos – muitas vezes como um estalo - como nos impede de sermos mais felizes. Essa primeira compreensão de que é o nosso medo/ansiedade/desconfiança que nos impede de alcançar a felicidade que buscamos, pois é essa barreira que nos leva a correr da vida ou brigar com ela, é o primeiro passo para nos atrevermos a olhar para isso com mais atenção. E o segundo é conseguir aguentar toda a raiva, frustração, rebeldia, mau humor, prepotência e acusação guardadas ali sem paralisar-se, nem brigar com isso e nem sair correndo de volta aos hábitos de amortização dessa dor. Então, depois de muitas tentativas e perseverança, você consegue ficar consigo mesmo nesse lugar desagradável sem sair correndo nem brigar consigo nem culpar o mundo (o Outro, o trabalho, o chefe, o orientador, a família, os amigos, a sociedade, a humanidade, etc, etc, etc ad infinitum) e merece o prêmio da felicidade eterna, certo? Vamos lá, amiguinhos: o herói que se aventura nos emaranhados da existência e acha que a brincadeira termina quando ganha o Reino – a princesa, o reconhecimento da humanidade ou a aprovação da mãe – acaba perdendo sua coragem e se transformando em um tirano. Para esses, que até fizeram um trabalho bacana, até conquistaram o Reino-princesa-reconhecimentodahumanidade-aprovaçãodamãe, mas pararam por aí, os greco-romanos criaram a Ilha da Bem Aventurança, governada por Saturno depois que ele perde a batalha com os filhos.  As descrições do lugar são bem bacanas também, parecendo férias no Caribe, com margueritas e camarões saindo da Cornucópia sem que ninguém precise mais trabalhar, um monte de outros heróis para bater papo e ficar lembrando as aventuras, um belo visual e boas ondas para surf matinal. Tipo capa de Caras, onde Jasão exibe seu Tosão de Ouro na estreia da nova banda de Orfeu. Muito bom para quem acha que Saturno é suficiente, já dá bastante trabalho e eu mereço algum descanso, puxa vida... Mas quando se trata de Quiron, podemos escolher ir além das férias no Caribe. Para se ter uma idéia de como isso é incomum e nem sempre possível, a mitologia grega tem apenas um herói que consegue isso, e em vez de ir para a Ilha da Bem Aventurança conquista um lugar no Olimpo junto aos deuses: Héracles-Hércules. Alcides para os íntimos. E é por isso que quando estudamos em mitologia as aventuras dos heróis temos histórias para cada um dos signos, preciosos ensinamentos morais e criativas discussões filosóficas, mas quando estudamos o mito de Hércules falamos de um processo de individuação. Algumas vezes uso o mito de Hércules para falar dos desafios de todos os 12 signos e das 12 casas através dos seus 12 trabalhos impossíveis. Não é coincidência que tenha sido exatamente Hércules quem fere a Quiron, trazendo para seu corpo sua ferida incurável, sua dor insuportável de alma para a consciência. De muitas maneiras, Hércules é o anti herói, sofrendo de demência, sendo humilhado, aviltado, traído, possuído por orgulho, matando e ferindo a quem ama, cheio de fraquezas e brutalidade. E é exatamente essa falta de virtudes que o encaminha cada vez mais profundamente para a busca de purificação, encontrada finalmente através da própria morte. Mas essa não é qualquer morte, mas sim a morte-ponte, que conduz da morte dos mortais à morte que imortaliza. Assim também é a morte de Quiron, que não é a morte para fugir da dor, que seria a morte suicida, mas a possibilidade de ir além da dor, ver o que está acontecendo e fazer o que se tem que fazer para se purificar e contribuir com o coletivo.

Pois Quiron está agora em Peixes, o último dos signos do Zodíaco, nesse fluxo com os outros signos de Água através de Saturno e Júpiter. Se Ar nos traz a capacidade de compreender e comunicar, Fogo nos dá o desejo de criar e agir, Terra nos mostra a forma do que queremos e do que somos, Água fala da Vida que flui através de nós. Esse elemento é o que falta para os cientistas que acham que podem criar vida inteligente, aos economistas que acreditam poder prever a história, aos artistas que tentam controlar sua criação. A Água destrói quando em excesso e também quando falta, por isso é preciso estar sempre atento a seus movimentos e aprender a conversar com ela para manter-se em equilíbrio. Quando tentamos descrever esse elemento, falamos de alma, de inconsciente, de psiquê, de emoções, sentimentos e uma série de outras coisas e conceitos que experimentamos, mas sabemos mesmo muito pouco como traduzir. Ainda entendo o elemento Água como nossa possibilidade de Mágica, e isso é muito desconcertante. Principalmente quando tenho que falar sobre ela usando conceitos e não imagens/poesia/música/dança etc. para pessoas que ainda acham que o Ser Humano é especial por suas capacidades mentais e neurais e que isso que chamo de mágica é loucura ou inocência, numa escala menor de valores e conquistas.

Quando falamos de Quiron em Peixes, falamos da ferida que temos na Alma Humana em sua conexão mais profunda com todos os seres. Ou se você prefere uma linguagem simbólica psicológica, na nossa conexão com o Self, o centro do nosso ser e ao mesmo tempo do Inconsciente Coletivo. Essa cisão é representada pelos dois peixes nadando em direções opostas, mas presos por um fio de ouro, e Quiron, com a ajuda dos outros planetas em Água, está apontando para isso e mostrando maneiras de irmos mais fundo. Se quisermos.

Podemos pensar em Saturno em Escorpião como a necessidade de encararmos e fazermos algo de concreto com nossos desejos, medos e apegos mais pessoais e Júpiter em Câncer como a possibilidade de criarmos vínculos profundos para além da família de sangue – inclusive com a própria família de sangue. A possibilidade de olharmos com mais profundidade a ferida de alma que carregamos pode ser muito mais rápida e profunda do que esperamos, estando Quiron tão bem apoiado e sustentado. Sim, isso significa ter também que fazer as tarefas saturninas e correr os riscos jupiterianos. As curas proporcionadas por Quiron são aquelas da consciência que conquistamos através da auto reflexão e auto observação, por praticas como meditação, yoga, caminhadas, revisão diária ou qualquer outra coisa que ajude a construir um olhar objetivo sobre o que se passa dentro de nós. Quiron nos mostra que somos capazes de olhar para nosso próprio sofrimento com compaixão sem nos deixar “raptar” pela dor, e assim fazer o que tem que ser feito para a cura. Isso muitas vezes vai significar o sacrifício de algo importante, como deixar ir um relacionamento que traz frustração e dor, ou deixar de lutar para obter o reconhecimento por algo que se merece, mas que custaria o abandono dos valores internos, ou mesmo passar por algo que seja dolorido e difícil entendendo que não se trata de algo pessoal, que os personagens da história não tem como saber o que está acontecendo desde o seu ponto de vista. Isso é mais do que desapego motivado por alguma crença religiosa ou moral. É a capacidade de permanecer consigo mesmo quando as coisas não são como devem ser, é aceitar a morte daquilo que aparentemente é tão precioso em nome de uma capacidade de olhar para si com compaixão, sem pena ou vitimismo, e ir além. Só depois de vivenciar isso podemos entender que o Amor que estava sendo desperdiçado naquele relacionamento permanece consigo, que o Mérito que não foi reconhecido externamente é realmente seu, que a vivencia dolorosa tem uma parte de responsabilidade pessoal que pode ser transformada independente do que os outros façam com aquela experiência. E isso cura. E nos torna mais compassivos com relação às dores dos outros também.


E como amanhã é Páscoa e festejamos a libertação, espero que possamos estar aproveitando bem esse tempo estranho em que vivemos para irmos além. Segundo o mito, Deus ressuscita em corpo, com todas as suas chagas e feridas reluzentes, e se apresenta em Sua Gloria primeiramente para Maria Madalena, aquela que não foi condenada e se tornou a padroeira dos ciganos. Eu acho isso lindo, e precioso de ser comemorado.

domingo, 2 de março de 2014

A Vida Prevista e a Vida Vivida

“Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.”
Antônio Machado


“Caminhante, suas pegadas são
O caminho e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
O caminho se faz ao andar.
Ao andar se faz o caminho
E ao se voltar a vista para traz
Vê-se a trilha que nunca
Se irá voltar a pisar.
Caminhante não há caminho
Apenas estrelas no mar.”

Se entendermos como os arquétipos dos astros de nosso mapa se constelaram em nossa vida, podemos seguir adiante e progredi-los para continuar contando nossa história. O que se observa é que as progressões mostram situações de desdobramento desses momentos, e assim conseguimos aprofundar a compreensão daquilo que nos faz ser o que somos. Teoricamente isso pode ser usado como oportunidade de mudança através de maior compreensão, pois se entendemos como nossa consciência se formou e quais padrões de medo e distorção se cristalizaram em nossas vidas, podemos trabalhar para mudar esses padrões e criar outros mais felizes. Bonito isso, né? É bem comum ouvir dizer que o nosso mundo e destino funcionam assim hoje em dia. Mas eu ainda sinto que esse é um ponto espinhoso de reflexão – e por isso tão interessante. Desde o século XVIII, com a invenção do indivíduo para além da unidade biológica, ficou mais complexo pensar sobre o que move o Ser Humano e sobre nossos impulsos de liberdade e de destino, de acaso e necessidade. Mais ainda nessa sociedade globalizada de massa transaturnina em que vivemos. Responsabilidade pessoal x destino pré-determinado: como conciliar o trabalho das Moiras que determinam nosso destino com a epígrafe do Templo de Delfos, “Conhece-te a Ti Mesmo”?

Esse é um tema que vira e mexe reaparece nas minhas conversas internas, e que me ocupou enquanto relia um pequeno e interessante livro que traz uma vida codificada astrologicamente, uma espécie de autobiografia progredida. Trata-se da vida de J.B. Morin de Villefranche, grande astrólogo contemporâneo de Kepler, que viveu entre 1583 e 1656. Professor de Matemática do Collége de France, Villefranche fez uma revisão muito importante das progressões e de várias regras astrológicas de interpretação. Em sua grande obra, Astrologia Gallica, ele muitas vezes utiliza sua biografia para exemplificar as progressões (direções, revolução solar e lunar principalmente) e trânsitos. O astrólogo francês Jean Hièroz colecionou esses exemplos autobiográficos e nos presenteou com Minha Vida Perante os Astros (traduzida no Brasil por Marcia Bernardo, Ed. Espaço do Céu Centro de Astrologia, 2002).

Vamos fazer uns parênteses aqui para dar uma ideia melhor do que estamos falando quando nos referimos às progressões utilizadas por Villefranche. A progressão primária, antigamente chamada de direção, é usada de maneira privilegiada em seu trabalho. Essa progressão transforma o movimento diário de cada astro em movimento anual. Cada planeta tem seu próprio movimento médio anual, levando em conta inclusive seus movimentos diretos e retrógrados. Apenas o Sol e a Lua têm um movimento constante e sempre direto, o que os fazem ser parâmetro para progressões secundárias, como na Revolução Solar (aqui você pode ter uma ideia do que é isso: http://tecadias.blogspot.com.br/2009/09/revolucao-solar-face-rebelde-do-sol.html) e na Lunar (que é uma progressão mensal feita através da Lua em seu ciclo de 28 dias em volta da Terra). Se você quiser investigar as direções no seu mapa – o que recomendo muito -, aqui vai uma lista do movimento médio anual dos planetas progredidos, e aí é só avançar os astros nesses graus para cada ano de vida (lembrando que um signo tem 30°, um grau 60’ e um minuto de grau 60”), ver quem encontra com quem de que jeito, quando muda de casa e de signo, e construir sua própria biografia progredida:

Sol – 1° por dia
Lua – 12º por dia
Mercúrio – 1°23’ por dia
Vênus – 1°12’ por dia
Marte – 0°31’ por dia
Júpiter – 0°5’ por dia
Saturno – 0°2’ por dia

Os Transaturninos são bem lentos, e por isso não faz sentido usá-los nesse tipo de progressão, e para Villefranche eles não eram nem sonhados, mas para sua cultura geral:

Urano – 0°0’42”  por dia
Netuno – 0°0’24” por dia
Plutão – 0°0’01”  por dia

A leitura de “Minha Vida Perante os Astros” é interessante em muitos sentidos, e tentar ler esses relatos autobiográficos e astrológicos com os olhos do século XVII - ou seja, muito antes da penicilina, de Freud e Jung ou da física quântica -, dá muito material para nosso Mercúrio se divertir. Mas ver como Morin de Villefranche trabalha os acontecimentos de sua vida de modo a explicar seus problemas através dos astros não é apenas didático, mas também instigante. Claro que muito das desgraças que lhe acontecem são culpa de Saturno e Marte, os grandes vilões da astrologia tradicional, e ele só não se acaba de vez por conta das saídas criadas por Vênus, Júpiter e a Misericórdia Divina. Mas o grande problema de sua existência e de seu destino é o incrível stellium no signo de Peixes na casa XII: Vênus, Sol, Júpiter, Saturno e Lua! Todo mundo junto naquela que era conhecida como “Casa da Miséria e do Aprisionamento”. Para expressar tanta “piscianisse”, Villefranche conta com um ascendente ariano, que, digamos assim, não é dos signos mais introvertidos que conhecemos, e não irá facilitar muito o processo de introversão necessário para elementos de casa XII. Se você quiser dar uma olhada no mapa todo, seus dados de nascimento são: 23/02/1583 às 8h33min, em Villefranche, Beaujolais, França.

“Minha Vida Perante os Astros” é estruturado de maneira bem didática, com a descrição de um evento na vida de Villefranche, seguida de uma descrição astrológica da progressão e/ou trânsito que “causou” o evento. Apesar de escrito em “astrologuês”, portanto um tanto enfadonho para quem não domina essa linguagem, são muito divertidos os relatos do que esse senhor aprontou em sua vida. Para se entender o que estou falando, aqui vai um exemplo. Primeiro ele cita o fato que irá analisar de sua biografia (os comentários entre parênteses são meus): “No dia 30 de maio (de 1612), dia do grande eclipse do Sol, após uma bebedeira exagerada com dois amigos suíços, meus colegas de Filosofia, e após exercícios físicos bastante violentos em pleno meio-dia, apesar do ardor do Sol, eu fui tomado por uma longa e grave doença. Essas doença se complicou com febre crônica, (...), icterícia e hidropisia, durando mais de 6 meses e foi tão grave que os médicos me condenaram e aconselharam a ir, se possível, morrer na minha região (SIC). Eu fiz esta longa viagem com meus dois amigos suíços que retornaram a sua pátria. O exercício, a mudança de ar e o uso de um generoso vinho branco tiveram por consequência suores noturnos abundantes e muito cansativos, que ao fim de um mês, livraram-me desta doença. No decorrer desta, meus cabelos tornaram-se completamente ruivos e encrespados como os de um etíope. Retornaram em seguida sua cor normal”.

Para fazer uma explicação astrológica do ocorrido, Villefranche utiliza Direções no tema radical (ou seja, ele progride os astros conforme seu movimento dia/ano), a Revolução Solar do seu aniversário daquele ano, a Revolução Lunar do mês em que caiu doente, e ainda faz direções no mapa da Revolução Solar e no da Revolução Lunar! Muito didático realmente, mas tanto detalhamento de responsabilidades astrológicas deixa muito pouco espaço para qualquer responsabilidade pessoal. Aqui um trecho de uma dessas tantas explanações astrológicas para se entender do que estou falando (lembrando novamente que Villefranche só conhece o céu até Saturno): pg 41/42 “(...) esta (enfermidade) deve sua importância ao Sol e à Lua feridos por Saturno. Ela teve por origem uma bebedeira e jogos sob o Sol ardente, por causa do Sol e de Mercúrio, donos da V - casa das voluptuosidades - em ambas as cartas (Revolução Solar e mapa radical), feridos por Saturno, e porque Júpiter, dono da VIII e XII (onde se encontra Sagitário e Peixes) em ambas as cartas se encontrar na V. Ela foi longa por causa de Saturno e bastante perigosa devido à Lua na VII da Revolução Solar com uma estrela fixa violenta (Antares, também chamada Coração do Escorpião) que cai precisamente sobre a cúspide da VIII.”

Vejamos: esse senhor toma o maior porre pela manhã e vai fazer exercícios violentos com sol a pino, seu fígado e seus rins lhe perguntam de maneira bem enfática para onde ele pensa que vai, e o problema é a ferida feita por Saturno. E claro que ele só fez essas coisas todas por conta do Sol e Mercúrio atiçando sua voluptuosidade de casa V. Então tá, né? Não acho que precisaria de tantos detalhamentos astrológicos para aconselhar Villefranche a não fazer esse tipo de coisa senão ele pode ficar doente. E com Saturno conjunção ao Sol e enquadrado com a Lua na Revolução Solar, eu diria que estar atento às limitações seria sábio. Mas falar isso para um pisciano/ariano não é a coisa mais bem recebida do mundo, certo? Em um ano em que sua Revolução Solar tem uma Lua em Sagitário então... Como esperar que esse senhor seja comedido para não ficar doente esse ano? E gente, que médicos do SUS são esses que mandam Villefranche ir morrer em casa, estando ele no sul da França e a casa dele estando na Suíça? Mas interessante mesmo é que a cura de sua enfermidade vem exatamente dos mesmos elementos que a causaram: bebida e exercícios físicos, ou seja, aquilo que começa como imprudência e descomedimento se transformam em expurgo e purificação.

E aí tenho sempre essa dúvida quando tenho que responder às demandas de previsão daqueles que me procuram. A maioria das pessoas que buscam algum tipo de olhar preventivo para o futuro têm em mente a pergunta “qual o melhor caminho?” ou então “qual o caminho correto?”. E uma voz ancestral sempre pergunta dentro de mim: “melhor para quem, cara pálida?”, “correto para quem, caraíba?”.

Sempre que olho para um mapa minha mente se enche de perguntas e não de respostas ou de certezas. A primeira pergunta quase sempre é “quem é essa pessoa, e como ela faz para que esses símbolos se concretizem em sua vida”? Principalmente quando olho o mapa de pessoas muito jovens, essa minha curiosidade básica costuma gerar leituras bem ricas e muito mais interessantes do que aquelas que vendem nos manuais de astrologia. Outro dia uma cliente, que é psicóloga e que entende de astrologia, me dizia que algumas vezes ela olha para um mapa e não consegue ler nada (o que é bem comum no início, não se incomodem quando isso ocorrer), e pensando sobre isso com ela através de pontos do seu mapa, chegamos à conclusão que muitas vezes ficamos tão presos àquilo que sabemos de um jeito, que quando a mesma coisa se apresenta de outra maneira acabamos por rejeitá-la. O que é uma pena, e uma perda importante. Acredito que é por isso que muitas vezes me dizem que não conseguem ler o próprio mapa. Estamos tão presos à nossa auto imagem idealizada, ou às histórias do nosso passado que justificam sermos como somos, que se torna difícil olharmos para nós mesmos com curiosidade, refazendo a pergunta de quem somos nós, qual o significado do que estamos vivendo, e, a melhor de todas pra mim, o que que eu quero mesmo?

Outra coisa que tenho reparado, principalmente quando olho para meu próprio mapa, é que essa curiosidade a respeito de si mesmo faz com que o tal futuro deixe de ser uma ameaça e passe a ser uma aventura. Assim, quando aquilo que você “previu” acontece, ou seja, ganha uma forma reconhecível em sua vida, a sua atenção pode se voltar para aquilo que está sendo revelado de novo em você. Isso significa que, mesmo que o final da história não seja exatamente aquele para o qual você estava torcendo, e haja algum nível de dor e/ou perda, a energia despertada pelo auto conhecimento pode trazer a alegria de mais um passo e a possibilidade de caminhar para um lugar onde essa dor não precise mais ser vivida, onde as coisas possam ser diferentes, pois você abre a possibilidade de reagir de maneira diferente e por isso a história muda. A isso eu chamo de cura.

Bom, e depois de tantos anos vocês já devem estar acostumados com essa coisa d’eu começar a escrever pensando que vou chegar a um lugar específico e quando vejo escrevi um monte e perdi o lugar de chegada. Mas é por isso que gosto tanto de escrever... Ultimamente está sendo bem difícil conseguir ser muito específica pois estou tentando aproveitar esse Netuno em Peixes para entender – mais uma vez – um pouco melhor a física quântica. Depois de ler uma biografia do Einstein escrita por um físico, caiu nas minhas mãos uma coletânea de textos do Neils Bohr que são pura poesia, muitos deles verdadeiros koans que me fazem ficar horas delirando (obrigada Antônio Celso). Um deles tem vindo à minha cabeça em algumas leituras e previsões feitas nos últimos dias, e acho que pode traduzir o que queria falar para vocês sobre previsões aqui:

“O oposto de uma verdade é uma mentira, mas o oposto de uma verdade profunda pode muito bem ser outra verdade profunda”.

A Astrologia e a Vida muitas vezes podem trazer uma verdade profunda que é oposta à verdade profunda que havíamos descoberto antes. E isso é bom. E leiam Villefranche.