“Inventar uma vida é a tarefa mais fascinante de um humano,
exatamente pelo tanto de improvável e de absurdo que contem. É, como sabemos,
nossa primeira ficção. E a empreendemos nus e com tão pouco.”
Eliane Brum
Plutão estará em movimento retrógrado até novembro, e isso
significa uma ótima oportunidade para se pensar como as vivências externas e
coletivas têm ativado processos e construções - ou desconstruções – internas.
Com essa quadratura entre Urano em Aries e Plutão em Capricórnio que andamos
vivendo nos últimos anos, uma pausa para se entender no meio de tudo isso é
sempre bem vinda. Quando o mais lento dos planetas resolve dar uma olhada para
traz saindo da sua expressão normal de tempo, podemos ver nossos movimentos
dentro de um quadro mais amplo. A ideia é poder estar eliminando o que ainda
pesa, limpando o que ainda fede e perceber as mudanças que já se operaram, para
assim conseguir avaliar nosso processo de auto regeneração e programar, com
ajuda do inconsciente, os próximos passos. Coisa pra gente grande, eu sei...
Essa briga entre mocinhos e bandidos que Urano em Aries vem
instigando (capitalistas reacionários x comunistas corruptos é das mais óbvias)
tem feito com que a sombra da estrutura capricorniana venha com mais força e a
tendência a nos tornarmos fundamentalistas em busca do Poder fica evidente a
cada passo, a cada disputa eleitoral, a cada PEC (proposta de emenda à
constituição), a cada carteirada de juiz, a cada carro que estaciona sobre
ciclovia ou em vaga de cadeirante.
Quando se percebe que olhar as necessidades
de transformação internas trazem melhores frutos do que as tentativas de mudar
o mundo externo, buscar as muitas coisas que ainda precisam ser feitas em si pode
ser bem animado e uma ótima alternativa à depressão. Assim podemos aproveitar
melhor também a força sugerida no 16º de Capricórnio pelos símbolos sabeus,
onde Plutão está retroagindo: “quadras escolares repletas de jovens em roupas
de ginática”. Pelo jeito aqui temos energia suficiente para reavivar vulcões e
abalar o Himalaia...
O primeiro passo para isso é aceitar que não existem
mocinhos e bandidos, que os capitalistas reacionários são corruptos e os
comunistas corruptos são reacionários. E nós somos as duas coisas. Também. Assim
como ser patriota é respeitar o povo que elegeu o partido comunista corrupto
para o Executivo e os partidos capitalistas reacionários para o Legislativo.
Também. O que quero dizer é que não dá
para eliminar o Inimigo, mas se você parar de xingar o Outro e olhá-lo nos
olhos, ele pode ajudar você a se transformar no seu melhor potencial. E isso apenas
seu Inimigo mais visceral poderá fazer. Com ajuda de Plutão então... Bom, com
Plutão você não terá muitas outras opções...
Toda vez que o Outro está 100% errado e você está 100%
certo, pode ter certeza de estar lidando com algum tipo de projeção. Isso quer
dizer que você pegou uma parte sua que é mais aceita em algum nível (familiar, religioso,
social, amoroso, etc.) e achou alguém ou alguma coisa para usar de
cabide e pendurar aquilo que em você é oposto à imagem bacana que você tem
de você mesmo. Winnicott fala da grande aventura que é a construção da nossa
individualidade (individuo = individuus = indivisível). Nascemos absolutamente dependentes de um
adulto que cuide de nossas necessidades e que integre as nossas variadas
experiências e percepções em um alguém coerente que poderemos chamar de eu. Uma
das estratégias que usamos nessa construção é transformar as contradições e
oposições que encontramos em um mesmo lugar em dois lugares diferentes. Assim imaginamos
que existe uma mãe boa, que nos alimenta, nos troca, interage conosco e nos dá
tudo que queremos e precisamos, e uma mãe má, que não nos alimenta quando temos
fome e está fazendo outra coisa que não é cuidar de nós o tempo todo e por isso
estamos em sofrimento. A ideia de que a mãe má e a boa são a mesma pessoa é
avassaladora para esse ser em formação. Acho que seria mais ou menos como o
Batman descobrir que o Coringa na verdade é seu pai e a Mulher Gato sua mãe, sendo
eles quem pagam todas as contas do Bruce Wayne e da Bat aventura ao mesmo tempo
em que o atormentam nas noites de Gotham City. Não faz sentido nem para o
Kubrick. Então nós pequeninos amamos nossa mãe boa e combatemos a mãe má, até
conseguirmos nos desenvolver o suficiente para encarar aquilo que foi chamado
de Princípio da Realidade, ou seja, que essa história de mocinhos e bandidos, Vingadores
vs Ultron é só uma distração de 2 horas em 3D no cinema perto de sua casa.
Os males da sociedade são nossos próprios males, mesmo que
coloquemos a culpa nos políticos, no povo ou na mãe (sim, o secretário de
segurança pública do RS disse que a culpa do aumento da criminalidade é das
mulheres que trabalham fora). Com Plutão retrógrado em Capricórnio é possível
entendermos a responsabilidade que temos em nossa construção de identidade,
desde que consigamos incorporar nessa construção também os elementos
destrutivos e distorcidos. Isso não é fácil, pois estamos acostumados a pensar apenas
a partir de sistemas lineares, simples, e onde ainda não amadurecemos o
suficiente vamos trabalhar com crenças generalizadoras e sentir a frustração como
uma ameaça. Como diz o filósofo David Weinberger no livro To Big for Know: “Usar universais é uma tática simplificadora
dentro de nossa estratégia mais abrangente para lidar com um mundo que é grande
demais para ser conhecido, reduzindo o conhecimento àquilo que nosso cérebro e
nossa tecnologia nos permitem lidar.” Acontece que atualmente e como adultos temos
que trabalhar com sistemas complexos, onde o foco não está mais no sujeito ou
no objeto, mas na relação, na conexão entre eles. Nem todas as conexões podem
ser ótimas, ou seja, podem satisfazer às necessidades ou desejos ideais
simultaneamente de modo a nos manter em equilíbrio e com um gasto mínimo de
energia. Sistemas complexos só podem ser explicados e compreendidos através da
desordem e da frustração.
No símbolo de Plutão temos o divino isolado da matéria, e
isso significa que esse planeta (planetoide, bi-planeta, ugabuga, ou seja lá
como os astrônomos queiram chama-lo) traz o desolamento de não entendermos o
significado maior de algo que parece muito ruim e muito frustrante, principalmente
se quisermos buscar um sentido moral para o que acontece. A grande tentação que
Plutão traz é acharmos que somos tão bacanas que se tivéssemos poder faríamos
melhor, diferente, e traríamos a paz ao mundo, ou seja, faríamos o sistema
entrar em equilíbrio. Principalmente se pudéssemos eliminar algumas dúzias de
pessoas do mal. E segundo uma pesquisa que li falando de alguns assuntos
polêmicos, eu eliminaria 93% da população. Ops... Pois então: Plutão foi
avistado pela primeira vez em Câncer (signo oposto a Capricórnio) na mesma
época em que ascendia o Nazismo na Alemanha e ele nos mostra sem anestesia que
não adianta sermos bacaninhas na tentativa de negociar uma vida sem problemas
com o Destino. As Moiras não aceitam barganhas e cobram caro esse tipo de
ignorância.
É preciso abrir mão da ignorância que justificamos chamando
de inocência para poder caminhar com Plutão até esses labirintos internos mais
sombrios. Precisamos querer ver a verdade. Quando olhamos a nós mesmos com os
olhos de Plutão podemos parecer bem mesquinhos e virulentos. Mas se você não
olhar para isso com seriedade, essas mesquinharias e virulências vão contaminar
o ambiente sem que você perceba, e aí você acaba nesse lugar impotente da
vítima sem entender como. Você só estava brincando, né? Pois esse momento de
Plutão retrógrado serve para pararmos de tentar esconder esse lado mais sombrio,
nossas corrupções e desvios de verbas internos. Para isso teremos ajuda das
nossas conexões e relacionamentos que denunciarão isso. Os falsos estados de
equilíbrios, aqueles que se mantêm ao custo de não se olhar para as coisas como
são ou de se fingir não estar em frustração não têm mais energia para
manter-se, e então se rompem, muitas vezes de maneiras bem feias. Ou
aparentemente feias, pois têm cara de caos, de desordem. Mas tenha certeza que
só a partir disso algo novo vai poder ser criado. Vamos lá: respire e solte...
Nós temos uma incrível necessidade de auto superação que aparece quando saímos
desse lugar de vítima, e isso é tremendamente importante para podermos
construir uma melhor civilização. Essa aproximação que podemos fazer nesse
momento entre a nossa vida interior e a exterior são bem importantes. Muitas
vezes é através da consciência que adquirimos nesses colapsos que podemos chegar
naquele olhar no espelho que diz: “eu te odeio”. Se você conseguir sustentar
esse olhar sem sair correndo ou sucumbir a ele, você então poderá passar para a
fase criativa, que vem depois que conseguirmos perguntar ao espelho: “por quê?”.
Aqui você vai conseguir caminhar por muitas das questões que realmente trazem
sofrimento para você a partir de você mesmo. Não tenho como falar ou mostrar a
mudança que pode causar na sua vida o encontro das justificativas que o
sabotador interno cria para te deixar bem infeliz e assim se manter no
controle.
O melhor lugar para se encontrar refúgio nesses momentos de
colapso é sem dúvida no corpo físico. Como diz o povo que faz trabalhos
corporais, nosso corpo somos nós no sentido mais básico, pois é nossa única
realidade perceptível, e é muito importante que não o percebamos como oposto à
nossa inteligência, espírito, sentimento, alma ou seja lá com que outra parte
escolhemos colocar nossa identidade consciente “bacana”. O corpo sempre nos
inclui e dá abrigo e por isso “ter consciência do próprio corpo é ter acesso ao
ser inteiro... Pois corpo e espírito, psíquico e físico, até força e fraqueza,
representam não a dualidade do ser, mas sua unidade” (Thérèse Bertherat e Carol
Bernstein; O Corpo Tem Suas Razões).
Que fique bem claro que aqui não estou falando sobre a obsessão de se moldar o
corpo segundo um padrão estético de massa aprisionante e sim na consciência de
que você e seu corpo, independente da forma que tenha, é você. Citando
novamente Bertherat e Bernstein: “Saúde, bem estar, segurança, prazeres,
deixamos tudo a cargo dos médicos, patrões, maridos, esposas, amantes, filhos.
Confiamos a responsabilidade de nossa vida, de nosso corpo, aos outros, por
vezes àqueles que não desejam essa responsabilidade e se sentem esmagados por
ela; quase sempre àqueles que pertencem a Instituições cuja primeira finalidade
é nos tranquilizar e, portanto, de nos reprimir”. Então, se você se sente em
colapso, se seus relacionamento estão gerando frustrações, e você começa a
entender que existem mais coisas em você do que você pensava – ou gostaria –
respire, solte e vá para seu corpo, onde todas as suas contradições, emoções,
crenças, valores, vivências e hábitos tem um lugar e podem mostrar o
sistema complexo que você é. Se você escolher conhecer seu corpo em vez de
combatê-lo, se as frustrações por ser um ser limitado puderem ser substituído por
uma real curiosidade a respeito de si, se você se perguntar o que significa
essa barriga, ou essa dor no joelho, ou essa vista cansada em vez de ficar
tentando “corrigir” essas coisas, você vai ganhar em primeiro lugar autonomia,
pois não precisa mais de algo externo para te dizer como você deve ser ou o que
fazer consigo, já que seu corpo vai poder te falar isso. Mas principalmente você
vai poder passar a usufruir o estar aqui, nesse momento, nesse corpo, que é só
seu e de mais ninguém e que, mesmo com todas as contradições, traumas, dores e
dificuldades, ainda dança, canta, sente e dá prazer. Esse livro, O Corpo Tem Suas Razões, é mesmo muito
bom para pensar sobre isso: “quando renunciamos à autonomia, abdicamos de nossa
soberania individual. Passamos a pertencer aos poderes, aos seres que nos
recuperaram. Se reivindicamos tanto a liberdade é porque nos sentimos escravos;
e os mais lúcidos reconhecem ser escravos-cúmplices. Mas como poderia ser de
outro jeito, se não chegamos a ser donos nem de nossa primeira casa, da casa
que é o corpo?”
Tenho percebido ao longo do tempo que esse voltar-se para
conhecer e explorar o corpo é a melhor maneira de se tratar as crises ligadas
aos transaturninos em geral e Plutão em especial. Acho que a principal razão
disso é por que o corpo não mente, por mais enxertos e maquiagens que usemos. Mesmo
se pensarmos nos transexuais, que nascem em um corpo de gênero oposto ao que
são internamente, esse corpo também abriga quem essa pessoa é, e pode até se
deixar moldar. A relação entre esse corpo e essa pessoa também irá criar uma
identidade única. E se a relação não for amorosa, dificilmente poderá ter um
caminho feliz. Também porque o corpo é o melhor professor para se trabalhar
frustração. Diferente do relacionamento com uma outra pessoa, não podemos
simplesmente ir embora quando nos frustramos ou nos assustamos conosco mesmos. Podemos
deixar nossos corpos – de inúmeras maneiras – mas isso não irá eliminar ou
resolver a questão, e geralmente cria mais problemas, que vão nos debilitando mais e mais até o corpo se desligar
de vez. Plutão em especial costuma estar ligado a doenças bem debilitantes construídas
com a negatividade interna não consciente. Cuidar do corpo nesse contexto não é acreditar na
vida eterna do nosso físico ou na eterna juventude vendida como ideal, mas é
conseguir estar bem consigo através do corpo. Isso vai integrá-lo em um todo
coerente muito mais profundamente do que qualquer coisa externa que se
encontre.
Como dizia Eduardo Galeano, de mui saudosa lembrança: “A
Igreja diz: o corpo é uma culpa. A Ciência diz: o corpo é uma máquina. A
publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa”.
2 comentários:
Agradeço a reflexão e o foco que é dado ao corpo tão desvirtuado e negligenciado.
Corpo é Vida, o Vaso, a essência está inclusa e reporta à frase de Teilhard de Chardin: " Somos seres espirituais a ter uma experiência humana" ...no e através do Corpo ( frágil, vulnerável...na sua poderosa complexidade).
E quanto mais nossa mente se expande, mais importante o corpo se torna, amigo Anônim@
Abraço
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